A casa onde moro era pouco mais do que um amontoado de ripas sobre um alicerce bem-fundado quando a vizinha D., que sempre olhava pela janela e de vez em quando esboçava um sorriso quando vínhamos visitar terreno, fundação e, depois, início das obras, arriscou romper o distanciamento social europeu.
Caminhou ela dezessete passos da porta de sua casa até onde eu estava estacionando o carro. O protocolar cumprimento de todas as vezes acabou virando um esboço de diálogo, com as perguntas que sempremente aguçam a curiosidade dos locais: de onde são vocês, por que se mudaram para cá, já falam esloveno, com o que trabalham, quanto tempo pretendem ficar.
Vencida a sabatina inicial, com um quê de brasilidade que se nos acomete sempre, convidamos D. para conhecer a casa.
— Entrar, posso? — rebateu ela, com aquela surpresa eslava característica de quem quase nunca convida ou é convidado a entrar em domicílio de ninguém.
— Nem é bem entrar, veja bem. A casa está tão no começo que o lado de dentro será menos convidativo do que o de fora. O café só poderemos oferecer daqui a alguns meses…
Com um olhar terno, quase maternal, visitou todos os espaços que seriam futuros cômodos de um lar. De vez em quando passava a mão em uma parede inconclusa ou no cano aparente que em algum momento receberia a torneira. Na minha cabeça viciada em buscar rimas plásticas, eram gestos que remetiam ao de um religioso abençoando um doente.
Em dado momento ela respirou fundo e nos perguntou se conhecíamos a lenda da criação da Eslovênia. Eu já havia ouvido algumas, é verdade. Mas com receio de perder uma boa prosa, balancei a cabeça negativamente. Fiz bem: era uma história então inédita aos meus ouvidos.
Contou D. que quando Deus confeccionava o mundo, depois de cumprir todas aquelas proezas descritas no “Gênesis”, ele pensou que era bom determinar pedacinhos da Terra para cada um dos tantos povos que havia. Mandou que os que se julgassem semelhantes formassem grupos e fizessem fila.
— Ah, vocês, chineses. Veja bem: são muitos mas reservei um grande território para que sejam felizes.
— Ciao, italianos: olha que bonita essa terrinha em formato de bota. Podem ficar! Prometo que um dia apareço para um almoço de domingo e beberemos um bom vinho.
— Brasileiros? Vejam só que beleza: natureza, bom clima, poucas tragédias naturais. Cuidem bem, viu!?
— Deixo a América para os americanos. Ou melhor: este imenso naco de América, os Estados Unidos, para os estadunidenses.
E assim, por diante.
Foram horas de muito trabalho. E Deus, que quando criou o mundo já era bem velhinho, estava cansado. Puxou seu trono celestial para se sentar, pediu que lhe trouxessem um refresco e, dali de cima, relaxava contemplando sua obra.
Então foi interrompido por um grupinho pequeno, talvez o menor dentre os tantos a que havia atendido naquele dia. Eram os eslovenos:
— Pô, seu Deus! Isso não se faz: o senhor se esqueceu da gente? Somos poucos, mas somos bons. Não queremos ficar desterrados, zanzando para lá e para cá, tampouco vivendo de favor, como se fôssemos um velho agregado em família de gente rica.
A esta altura, D. fez uma pausa e ensaiou uma fisionomia de mistério. Queria se certificar de que sua narrativa era habilidosa o suficiente para cativar nossa atenção, pensei eu. Dramatizava, indicando que o causo se aproximava do fim — a problematização do enredo era o auge que preparava o desfecho.
Deus coçou a cabeça. Sentiu a calvície que avançava forte, fazendo rarear seus longos cabelos da mesma maneira como hoje humanos arrasam a floresta amazônica. Soltou um suspiro, daqueles de quem tem uma solução mas, no fundo, lamenta ter de executá-la — sabe que haverá uma perda na operação.
— Olha, meus queridos filhos: não vou arranjar uma desculpinha, não vou fingir que este era meu plano. Como Deus, que sou, preciso ser honesto com vocês, comigo mesmo e com a natureza. Confesso que me esqueci completamente de vocês.
A decepção do povinho esloveno foi silenciosa e organizada. Era visível apenas nos semblantes.
— Mas também, vejam só vocês: ficam aí quietinhos! Já são poucos e, aposto, ficaram sempre no finzinho da fila, discretos. Não vieram dar pitacos na distribuição das terras como fizeram os americanos. Não ficaram gritando “agora é a minha vez” como fizeram os brasileiros. Não buscaram interferir no meu trabalho de nenhuma forma… Não tenho culpa, não vi vocês aí…
Fez uma nova pausa em busca de solução. E suas faces se iluminaram quando o impasse lhe parecia resolvido.
— Vou fazer o seguinte — disse Deus, e apontou seu dedo para um cantinho no mapa, entre Itália, Croácia, Hungria e Áustria, no ponto mais a oeste do que hoje se convencionou chamar de leste europeu. — Estão vendo este pontinho aqui? É pequeno, eu sei. Mas pelo que observo vocês caberiam aí com folga. Este naco de terra eu não repassei a ninguém… Como esqueci de vocês, é justo que assumam para si.
E foi assim que a Eslovênia ficou para os eslovenos. O que eles não sabiam era que toda a beleza que ali encontrariam seria incomparável com a de qualquer outra parte do globo.
Não porque Deus assim planejasse em benefício deles. Na realidade, Deus não havia dado aquela porção de território para ninguém porque pretendia fazer dali a sua própria casa. A Eslovênia seria o paraíso onde Deus planejava passar a eternidade.