A literatura de hoje parece feita para não incomodar. Um livro bem aceito é aquele que poderia ser citado numa bio de aplicativo de namoro. Que passa no crivo da ética afetiva digital. Que jamais será responsabilizado por gatilhos. A grande virtude do texto, agora, é não machucar ninguém. O problema é que isso o impede de tocar em qualquer coisa real.
O leitor sensível é o novo censor. Elegante, empático, atento ao sofrimento do mundo, mas com o dedo sempre no gatilho da denúncia. Ele não quer ler para sangrar; quer ler para se sentir bom. A literatura que o agrada não expõe feridas: cobre-as com frases reconfortantes, finais esperançosos, traumas superados em três capítulos. É uma literatura com cheiro de loja recém-inaugurada, onde tudo parece pronto para ser vendido e nenhum móvel tem lascas. O leitor sensível não quer ser confrontado; quer ser compreendido.
Ele não lê para conhecer o outro, lê para ver a si mesmo, de modo espelhado, ideal. Busca no texto um reflexo moralizado, uma validação afetiva, uma sala onde possa chorar de forma segura e onde nenhum personagem diga o que não deveria, nem morra sem sentido, nem ame alguém que ele não aprovaria. E os autores? Bom, os autores andam assustados.
Assustados com resenhas que soam como prontuários. Com leitores que confundem literatura com boletins de ocorrência emocional. Com cancelamentos por personagens que cometem erros. Com leitores que dizem “isso me ofendeu”, como se ofensa fosse métrica estética.
A nova obsessão não é mais por histórias, é por aprovação. Livros são consumidos como testes de afinidade. O algoritmo treina o gosto, e o gosto recompensa o algoritmo com estrelinhas, reacts e frases destacadas em fontes serifadas. Mas ninguém mais quer o incômodo que antes definia a literatura como forma: o desvio, o abismo, o desconforto. A palavra “perturbador” deixou de ser elogio e virou alerta de conteúdo.
Antes, o autor era um farsante ou um profeta; agora é um terapeuta de linguagem neutra. Deve cuidar das palavras como se fossem pacientes em recuperação, cada trauma precisa ser narrado com cautela, cada gesto precisa ser precedido por contexto, cada personagem deve ser exemplar ou ao menos redimível.
Não há espaço para os idiotas, os cruéis, os amargos — a menos que sejam redimidos pela cura ou punidos pela moral. Isso empobrece a literatura, não porque ela precise de vilões, mas porque ela precisa de verdade. E a verdade, frequentemente, é suja, ambígua, desconfortável.
Autores clássicos seriam linchados hoje. Kafka seria acusado de neurodivergência mal representada. Dostoiévski sofreria threads de mil tweets sobre toxicidade masculina. Clarice Lispector seria criticada por não oferecer representatividade étnica suficiente. Nelson Rodrigues… bem, esse sequer seria publicado. As editoras temem não o fracasso de vendas, mas o escândalo de imagem. Os leitores, por sua vez, não querem mais literatura, querem adesivos emocionais.
É claro que há um valor na sensibilidade, na escuta, na inclusão. Mas quando esses princípios se tornam aparato censor, o risco criativo é enforcado. O autor escreve com medo de quem vai sublinhar o que, de quem vai se dizer ferido por qual metáfora, de quem vai gritar no TikTok que aquele livro não cuidou de sua dor. A ficção vira protocolo de boas práticas.
Há quem diga: “literatura não é lugar para violência gratuita”. Concordamos. Mas quem define o que é gratuito? Uma morte mal explicada num conto pode valer mais do que 300 páginas de um romance. Um ato de violência em cena pode ser mais honesto do que o silenciamento de mil violências subentendidas. Um personagem racista pode revelar mais da estrutura do mundo do que todos os tratados corretos sobre racismo institucional. Mas não se pode arriscar. A chance de ser mal interpretado virou argumento para não escrever.
A consequência? Histórias que abraçam o leitor, mas não o sacodem. Frases que soam belas, mas não queimam. A ficção virou um spa. E o leitor sai de lá com a alma hidratada.
Literatura boa deixa o leitor irritado, dividido, manco. Faz com que ele questione o que pensa ser certo. Não oferece resposta, muito menos redenção automática. É claro que há exceções. Ainda se escreve com coragem. Ainda se publica com ferocidade. Mas o mainstream literário tem se transformado num condomínio estético, onde todo mundo se conhece, se parabeniza, se vigia.
Voltar a escrever personagens que não servem para aprendizado, mas para espanto. Voltar a narrar histórias que não salvam ninguém. Voltar a aceitar que literatura é, antes de tudo, um espaço de desordem simbólica. Um lugar onde o que não deve ser dito encontra forma.
O leitor sensível quer uma literatura que cuide de suas feridas. Mas talvez o papel da literatura não seja curar. Talvez ela deva cutucar, escancarar, sangrar mais um pouco. Porque o mundo real não fecha com arcos narrativos. Porque a verdade não vem com notas de rodapé. Porque a literatura que só conforta não forma leitores: forma clientes.
E clientes não mudam o mundo. Leitores, sim. Mas leitores de verdade sabem que um livro pode machucar. Que uma história pode doer. Que um personagem pode ser insuportável e ainda assim necessário. E que nem todo final precisa ser feliz, se for verdadeiro. A literatura não deve nada ao leitor. Não deve amor. Não deve justiça. Não deve conforto. Ela só deve uma coisa: ser literatura. O resto é mercado e carência.