Podcasts são a nova forma de parecer inteligente sem precisar ler nada

Podcasts são a nova forma de parecer inteligente sem precisar ler nada

“A vida é breve, a arte é longa, o tempo é afiado; tentar é arriscado, julgar é difícil”. Nesses cinco apontamentos Hipócrates (460 a.C. — 377 a.C.) foi de uma precisão de bisturi, insinuando ainda que há um atalho entre o tempo cronológico, finito, e a eternidade, que perscruta-nos a todos. Quiçá Tom Jobim (1927-1994) tenha sido mais feliz ao cantar que a arte é longa, sim; a vida, breve, claro; e o desejo que nutre o amor, insano. O tempo passa, a vida se vai, são tantas as obrigações, tantas são as distrações… Como não ficar para trás? Enquanto se delibera sobre uma qualquer solução, o mundo nunca para de transformar-se, testando nossa paciência. Sentir-se inútil é um imperativo moral.

O conhecimento muda, e é bom que assim o seja. Nos últimos anos, talvez o indício mais óbvio de que pode-se adquirir algum saber abrindo-se mão dos métodos já consagrados é o uso da tecnologia em expedientes tão novos que permanecem um enigma para muitos. Podcasts constituem um produto vistoso, em que sobejam recursos técnicos milimetricamente pensados, trilhas sonoras perturbadoras, narrativas que mantêm o público atento. Se por um lado, há mais gente que se arrisca a descobrir novos assuntos, por outro a experiência cognitiva foi reduzida a um fetiche, e parecer inteligente conta mais do que sê-lo de fato. Antes, o usufruto do que se lê exige tempo, maturação, silêncio, ócio. Podcasts, ao contrário, oferecem sabedoria instantânea, numa perigosa simulação de profundidade.

Nas redes sociais (sempre elas…) são numerosos os compartilhamentos dos trechos mais pop de obras filosóficas que caíram no gosto do público leigo, o que dá a impressão de que todo mundo entende de Kant porque “cada um tem sua visão de Kant”. Por trás do fenômeno esconde-se uma modalidade bastante peculiar de ignorância, a ignorância autoritária, cujo fundamento primeiro é a reinterpretação de tudo quanto seja considerado obsoleto, velho, para que caiba nos novos padrões decretados por algum sabido. A mensagem é inequívoca: se no modelo tradicional leva-se uma vida para dominar um assunto, os espertos dos podcasts aprendem de ouvido, correndo na esteira, enchendo planilhas, pintando o cabelo.

Ser culto já foi ter uma noção ainda que elementar dos clássicos, pensamento inovador, capacidade analítica; hoje, saber que influenciador digital procurar e lembrar os episódios que mais viralizaram é o suficiente. Podcasts democratizam o acesso à produção científica, às artes, ao jornalismo ético e com contexto, porém tomá-los por último (e às vezes único) destino é de se lamentar. Esse mecanismo da ardilosa pós-modernidade nunca há de ser capaz de substituir a pesquisa, a reflexão, o embate entre a teoria e a prática, a letra e a vivência. A falsa ideia de se estar por dentro sem deixar a superfície é um problema que algoritmo nenhum resolve.

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.