Ney Matogrosso não é masculino ou feminino, mas uma entidade, um espírito que guarda as florestas e as águas materializado em seu canto andrógino. Este poderia ser um grande problema em “Homem com H”, mas o diretor-roteirista Esmir Filho acha o tom certo entre a magia de um garoto em seu doído processo de autoconhecimento e a ânsia por liberdade que, enfim, se materializa. Esmir propõe uma confusão deliberada entre a persona Matogrosso e Ney de Souza Pereira, um rapaz judicioso, romântico, até ingênuo, que gostava de usar o palco para instigar o público a rever seus conceitos e digerir seus preconceitos. “Homem com H” prima pela originalidade ao dar mais ênfase às sensações que às datas, complementando o rol de minuciosas retrospectivas cronológicas da biografia assinada pelo jornalista Julio Maria em 2021.
Ney parece estar perdido no cipoal de emoções que o diretor transforma numa selva de verdade, muito antes das corujas, pirilampos, sacis e fadas de “O Vira” (1973), um de seus primeiros e mais avassaladores sucessos, com o Secos & Molhados. Enquanto não se tornava quem era, Ney, aos sete anos, tenta sobreviver aos castigos do pai, Antônio, um sargento do Exército com uma ideia bastante peculiar de amor. Do alto de seus quase 84 anos, a serem completados em 1º de agosto, Ney tem rememorado em entrevistas alguns dos episódios de confronto mais explícito entre os dois, tudo registrado pela câmera sagaz de Esmir, que tem o condão de aproximar-se o quanto pode da cena, preservando a aura de intimidade das situações. Muito da beleza e da precisão da técnica de “Homem com H” deve-se a estes momentos, alinhavados com todo o rigor por Jesuíta Barbosa e Rômulo Braga.
Cerca de três décadas mais tarde, Antônio eBeíta, a mãe de Ney interpretada por Hermila Guedes, estão na plateia de um show de divulgação do álbum “Água do Céu — Pássaro” (1975), assistindo ao rebento dar vida a canções lendárias como “Pedra do Rio” e “Homem de Neanderthal”, orgulhosos cada qual a sua maneira. Claro que o filme chega a sua porção escândalo, e retrata o batidíssimo namoro de Ney e Cazuza (1958-1990) e o casamento de treze anos com o médico Marco de Maria (1960-1990), os dois abatidos por complicações da aids quase ao mesmo tempo. Jullio Reis e Bruno Montaleone encontram boa margem para a composição dessas duas figuras de graus de importância diversos na vida do protagonista, ao passo que, nesse segmento, Barbosa apaga-se um tanto. De qualquer modo, “Homem com H” é um achado ao desvelar Ney como o garoto admirado com as curvas e a voz de Elvira Pagã (1920-2003), uma diva cujos passos seguiu, porém sempre em busca de sua própria marca. Nem preto, nem branco, nem índio — ou tudo isso junto —, Ney Matogrosso é um inclassificável.
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