Livro ruim com causa social continua sendo livro ruim

Livro ruim com causa social continua sendo livro ruim

Em tempos em que os problemas sociais ganham cada vez mais espaço nas discussões públicas, na imprensa e nas manifestações artísticas, é cada vez mais comum encontrar publicações que abordam temas importantes como racismo, homofobia, xenofobia, miséria. Entretanto, é mister pontuar que a defesa de uma causa relevante não torna boa uma obra literária. Um livro cheio de personagens óbvios e sem nuanças, urdido numa trama confusa e autorreferente ou feito num estilo pasteurizado e artificioso continua sendo ruim, por mais nobre que seja a intenção de sua narrativa central. Discutir a sociedade e seus apertos é condição indispensável para a construção de um mundo mais fraterno. Contudo, no momento em que um livro torna-se relapso em seus aspectos formais — narrativa, estilo, verossimilhança, estrutura —, compromete o alcance da mensagem a ser transmitida. Em arte, propósitos magnânimos nada têm a ver com sofisticação. Diálogos frios ou em excesso, tipos caricatos, enredos previsíveis jamais conseguirão despertar o sincero interesse do leitor, quando não provocam o efeito inverso e o traumatizam, a despeito da relevância do que vai ali.

A boa literatura exige a observância de regras. Quando um autor se propõe a escrever um romance, não basta ter algo importante a dizer — é preciso saber de que maneira dizê-lo. Comprometer-se com uma demanda popular não isenta ninguém de primar pela coesão, pela coerência, ritmo e estética. Valer-se da literatura à luz de um instrumento de difusão de proselitismo ideológico ou panfletarismo partidário é um crime sem perdão. Escrever só faz sentido se for para oferecer ao outro mundos mais dialéticos, ambivalentes, marcados pela contradições que afrontam-nos todo santo dia e, também, por aquelas das quais só ficamos sabendo mediante as páginas dos jornais e o noticiário da TV. O que não significa que livros dependam da dureza da vida como ela é para instilar reflexão e levantar dilemas, mais largando pelo caminho perguntas do que elaborando respostas. Graciliano Ramos (1892-1953), George Orwell (1903-1950) e Toni Morrison (1931-2019) são exemplos de escritores que trataram com arguta maestria das mazelas humanas que os incomodaram em particular. Seu legado subsiste não apenas pelo que registraram, mas porque eram eles mesmos parte de suas histórias.

Muitas editoras têm investido fortemente em livros com os temas da moda, o que, por um lado, é positivo, porque amplia as vozes e as representações. No entanto, a pressa em lançar obras com temas relevantes pode fazer com que o crivo de qualidade literária seja afrouxado. Da mesma forma, muitos leitores — especialmente os mais engajados politicamente — podem se sentir pressionados a gostar de determinado livro simplesmente por causa do seu tema. Essa postura, embora bem-intencionada, impede uma leitura crítica e impede a evolução do próprio campo literário. O leitor consciente deve ser capaz de reconhecer a importância do tema sem deixar de apontar as falhas da obra. Alinhamento ideológico automático e incondicional é uma excrescência teratológica da literatura, que só atinge seu objetivo maior na medida em que borra as fronteiras do pensamento e sustenta a transgressão intelectual. Sem isso, povo nenhum pode experimentar o revolucionário progresso. 

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.