Autoficção virou desculpa para não criar enredo

Autoficção virou desculpa para não criar enredo

Notas biográficas coloridas por passagens do mais puro devaneio, ingênuo, às vezes pueril, mas também de viperina mordacidade, têm atraído os olhares de leitores chegados a inconfidências recheadas de picardia. A autoficção continua no radar do mercado editorial, dos autores, da imprensa e, claro, daqueles que encontram no gênero uma razão qualquer para crer que sua própria vida daria um livro. Não obstante, quando mais uma dessas histórias toma corpo e materializa-se nas páginas de publicações luxuosas, é inevitável a análise sobre uma certa banalização desse tipo de literatura, chegando-se até ao possível entendimento de que a autoficção converteu-se numa bem-sucedida estratégia para que se evite a criação de tramas mais ricas e mais bem estruturadas. Diferentemente da autobiografia tradicional, embasada num compromisso com a verdade dos fatos, na autoficção o autor reinterpreta eventos, personagens e emoções de modo a conferir-lhes um caráter de literatura. Escritores franceses contemporâneos alçaram lugar de destaque narrando episódios romanceados, felizes e desditosos, de sua infância e juventude, encontrando um campo de trabalho bastante fértil. Serge Doubrovsky (1928-2017) foi decerto o papa dessa enorme congregação, que consolidou-se com Marguerite Duras (1914-1996) e Philippe Lejeune, e deu em Annie Ernaux, Nobel de Literatura em 2022. Em sendo assim, a autoficção conquistou merecido espaço na literatura.

Uma crítica também justa à autoficção é que, não raro, muitos desses autores não observam aspectos básicos para a elaboração de uma narrativa minimamente coesa. Detalhes como estilo, estrutura e verossimilhança perdem-se frente à urgência de manter azeitado o eixo central de revelações e escândalos ou, pelo contrário, frivolidades do cotidiano alongadas em períodos longuíssimos, onde cabem ainda reflexões existenciais ou dilemas íntimos que, embora tenham potencial, carecem de solidez psicológica. Para muitos críticos e leitores mais apegados ao cânone, essa tendência levanta uma suspeita: será que parte da produção contemporânea não está usando a autoficção como desculpa para evitar o esforço criativo de imaginar e estruturar uma boa história? Outro problema apontado é o risco do egocentrismo. A autoficção, ao focar exclusivamente no eu, pode gerar obras ensimesmadas, desconectadas do mundo e de seus dramas coletivos. Numa época de crises políticas, sociais e ambientais, a insistência em uma literatura autocentrada pode parecer alienante ou mesmo elitista. Essa crítica não significa que a primeira pessoa deva ser expurgada da literatura, mas questiona o que esse ente tem a oferecer para além de si mesmo. Um relato íntimo pode ter valor universal, desde que seja capaz de transcender o indivíduo e dialogar com o restante da humanidade. Se isso não ocorre, a autoficção termina sendo apenas uma vitrine narcísica e egoica. E não há nada mais extenuante que o ego — o dos outros, sobretudo.

O enredo é, desde Aristóteles (384 a.C. — 322 a.C.), um elemento fundamental da narrativa. É por meio dele que o leitor se envolve, acompanha o desenvolvimento dos personagens, sofre com os conflitos e se satisfaz com as resoluções. Uma história bem contada tem o poder de transformar a experiência de leitura em algo memorável. A autoficção que abdica do enredo pode parecer inovadora ou ousada à primeira vista, mas corre o risco de ser esquecida rapidamente, pois não deixa ao leitor nada a que se apegar, além de fragmentos de confissão. A ausência de enredo, quando não justificada por uma estratégia literária consciente e bem executada, empobrece a narrativa. A autoficção não é, por natureza, um inimigo do enredo. Contudo, sua popularização excessiva e o uso acrítico do gênero por muitos autores têm levado à proliferação de textos fracos, mal estruturados e excessivamente centrados no eu. Usar a autoficção como desculpa para não criar enredo é reduzir o potencial da literatura a uma expressão pessoal desorganizada. É preciso retomar o valor do enredo como instrumento de sentido e beleza. Uma literatura poderosa não precisa escolher entre autenticidade e imaginação — pode, e deve, unir as duas coisas. A boa autoficção não foge da narrativa: ela a reinventa.

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.