Filme que é como se Steven Spielberg estivesse em um divã na terapia está na Netflix Divulgação / UPI

Filme que é como se Steven Spielberg estivesse em um divã na terapia está na Netflix


Steven Spielberg, um dos mais hábeis artesãos do entretenimento moderno, assina com “Os Fabelmans” algo que ultrapassa a habitual maestria técnica de sua filmografia: uma espécie de autoexame silencioso, um gesto de reconciliação entre o menino fascinado por imagens e o adulto que passou a vida inteira traduzindo emoções em linguagem cinematográfica. Ao contrário das homenagens ruidosas ao próprio ego que tantas vezes surgem quando diretores voltam-se ao seu passado, este filme escolhe o sussurro ao invés do grito. É um tributo pessoal ao cinema, sim, mas principalmente ao processo de formação subjetiva à dolorosa e inevitável colisão entre o olhar que descobre o mundo e a consciência que se forma a partir de perdas, silêncios e encantamentos.

Essa história de amadurecimento contada com delicadeza quase desarmante evita com rigor os atalhos sentimentais previsíveis que assolam produções do gênero. Spielberg, longe de buscar a dramatização forçada, investe em personagens verossímeis e situações que se impõem pela força do cotidiano. O protagonista, seu alter ego adolescente, não é heroico nem excepcional. É, antes de tudo, um garoto normal, cuja paixão por filmar cresce organicamente de um encantamento pueril até a realização existencial. O cinema não é retratado como fuga, mas como lente não para escapar da realidade, mas para compreendê-la. Cada curta que ele produz, ainda que com recursos modestos e plateia reduzida, atua como expressão íntima e espelho de sua transformação pessoal. Assistimos, assim, ao nascimento não apenas de um artista, mas de um olhar.

A estrutura familiar, foco narrativo e emocional do filme, sustenta a densidade afetiva da obra. Os pais, interpretados com precisão comovente por Michelle Williams e Paul Dano, representam dois polos de tensão fundamentais: a racionalidade previsível do pai versus a energia criativa, instável e quase mítica da mãe. É nos conflitos dessa tríade que se instala a tragédia silenciosa do filme: a impossibilidade de conciliar todas as formas de amor, a dolorosa constatação de que maturidade exige rupturas e que crescer, às vezes, é aceitar o fracasso dos laços que julgávamos eternos. Ao escolher iluminar a falência amorosa sem culpas explícitas ou vilões fáceis, Spielberg delineia com sensibilidade o contorno humano de sua história: todos erram, mas ninguém é essencialmente cruel. Apenas humanos demais.

O filme, por outro lado, não se furta a reconhecer sua natureza profundamente hollywoodiana. Ele se equilibra com habilidade entre um tom intimista e os códigos do entretenimento clássico: há cenas de humor bem calibrado, um ritmo sereno que nunca se arrasta, e até um momento de homenagem quase mitológica ao próprio cinema, com a participação inusitada e emocionante de David Lynch encarnando o lendário John Ford. Esse instante, que poderia soar forçado em mãos menos sutis, transforma-se aqui numa epifania silenciosa: não é apenas um tributo a um mestre, mas uma passagem de bastão simbólica, como se Spielberg dissesse, sem arrogância, “a linguagem que aprendi é a que me salvou”.

Se há imperfeições, personagens secundários pouco desenvolvidos, escolhas estéticas discutíveis como o uso artificial de lentes de contato, elas não comprometem o conjunto. Ao contrário, até reforçam a natureza artesanal e imperfeita do gesto que o filme representa. “Os Fabelmans” não é um monumento à genialidade; é uma carta escrita à mão, com falhas, com hesitações, mas também com ternura e coragem. Spielberg não quer nos impressionar, quer apenas partilhar. E talvez esse seja o seu maior acerto: ao olhar para si mesmo com honestidade e generosidade, ele nos convida a fazer o mesmo.

No fim, o filme se dissolve como um sonho que nos toca não pela magnitude das imagens, mas pela franqueza do que foi vivido. Mais do que um exercício de nostalgia ou um inventário de referências cinéfilas, “Os Fabelmans” é uma meditação sobre o poder de ver, e, ao ver, transformar dor em arte, perda em forma, memória em narrativa. Não há catarse, mas há compreensão. E isso, vindo de alguém que passou a vida ensinando a plateia a sonhar, é uma espécie de revelação: a de que, por trás de todo grande espetáculo, há sempre um garoto tentando entender por que as coisas doem, e por que, apesar de tudo, vale a pena continuar filmando.

Filme: Os Fabelmans
Diretor: Steven Spielberg
Ano: 2022
Gênero: Biografia/Drama
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★