A história que Katell Quillévéré inscreve em “É Tempo de Amar” não é um retrato de época nem uma evocação sentimental: é a dissecação, desconfortavelmente bela, de vidas moldadas pela culpa e pelas concessões morais que o amor impõe. Não se trata de entender o amor como uma força redentora, mas como um agente corrosivo, capaz de ocultar feridas sob o verniz da estabilidade. Inspirada por um segredo familiar — a avó que teve um filho com um oficial alemão durante a ocupação —, Quillévéré escava os escombros afetivos do pós-guerra para compor uma narrativa cuja potência reside não na originalidade da trama, mas na forma como dramatiza o silêncio, o desejo e o sacrifício. Ao abrir o filme com registros reais da libertação da França e da violência infligida às mulheres rotuladas como traidoras, a diretora impõe um pacto com a memória. No entanto, essa memória é menos histórica do que emocional — um território povoado por zonas de vergonha que não cessam de ecoar, mesmo quando encobertas por laços matrimoniais ou convenções sociais cuidadosamente cultivadas.
A protagonista, Madeleine, não é introduzida ao espectador com afeto, mas com uma brutalidade que a define: marcada com uma suástica na barriga e com os cabelos raspados, ela foge como um animal acuado por uma multidão que terceiriza sua própria culpa. O filho que ela carrega é menos uma criança do que um lembrete permanente da transgressão. Quando reaparece anos depois, trabalhando como garçonete num restaurante à beira-mar, vestindo um uniforme que parece mais uma punição simbólica, não há qualquer traço de regeneração — apenas adaptação. A maternidade, para ela, é um ato administrativo: Daniel é alimentado, vestido, instruído, mas não amado. Há ali uma pedagogia da exclusão, em que o afeto é retido como forma de penitência. É nesse vácuo emocional que se insere François, o estudante franzino e polido, cuja aparência frágil esconde uma identidade sexual reprimida. O encontro entre os dois não é fruto do acaso romântico, mas da convergência entre duas estratégias de sobrevivência: ambos buscam apagar um passado incômodo por meio de uma nova farsa. Mas o filme se recusa a tratar esse casamento como uma mentira: o que se estabelece ali é um amor genuíno, embora privado das condições necessárias para florescer plenamente.
O que intriga na construção de Quillévéré é sua recusa em hierarquizar emoções ou condenar seus personagens por seus subterfúgios. Há uma honestidade radical no modo como o filme explora os limites entre desejo, lealdade e convenção. François, ainda que tente aderir à norma, permanece irremediavelmente atraído pelo que não cabe nela. Madeleine, por sua vez, adota um olhar menos acusador do que exausto. A aparição de Jimmy — soldado negro que funciona como catalisador do único momento de expansão sensual do casal — explicita, porém, um ponto cego da narrativa: embora sua presença revele os contornos do poliamor e da fluidez desejante, o personagem é tratado como signo e não como sujeito. Sua súbita exclusão da trama apenas confirma seu papel instrumental. Ainda assim, a sequência a três revela algo valioso: a possibilidade de um vínculo que não se funde à lógica da posse, mas à da cumplicidade desejante. Essa breve comunhão, no entanto, logo cede lugar ao retorno da estrutura familiar, agora complementada por uma filha, enquanto Daniel continua orbitando o núcleo emocional do filme como um satélite melancólico e não reivindicado.
Essa oscilação entre o íntimo e o estrutural é reforçada pela direção de arte, que recorre a uma paleta saturada e figurinos que, longe de documentar a passagem do tempo, parecem deliberadamente anacrônicos. Os protagonistas envelhecem, mas não se transformam: seus rostos permanecem lisos, seus gestos calculados. Isso não é uma falha de verossimilhança, mas um comentário sobre a natureza do papel que desempenham. Eles não amadurecem — apenas refinam a performance social que assumiram. Em vez de buscar o envelhecimento físico, o filme aposta num envelhecimento moral: François e Madeleine tornam-se mais hábeis em encobrir, em negociar, em tolerar. E é nessa superfície em que tudo parece domesticado que o filme encontra sua inquietação mais profunda. A ausência de confronto não é pacificação, mas esgotamento. Não há resolução, apenas sobrevida. E talvez seja isso o que torna “É Tempo de Amar” tão perturbador: ao contrário do que sugerem suas imagens românticas, ele não acredita em recomeços, mas em arranjos precários sustentados pelo medo da solidão.
A estação de trem no desfecho, evocando com precisão o estilo de David Lean, não é apenas um cenário para a despedida, mas a materialização de tudo o que nunca foi dito. O filme chega ali não como quem encerra um ciclo, mas como quem reconhece o quanto da existência é feita de intervalos — momentos que escapam à lógica dos acontecimentos principais, mas que condensam tudo o que realmente importa. Quillévéré, ainda que não alcance aqui o nível de conexão visceral de “Réparer les vivants”, compõe uma narrativa que merece ser lida não apenas como crônica de um tempo ou de um casamento, mas como estudo daquilo que fica — o amor como retalho costurado com culpa, desejo e silêncio. A inquietude do filme está naquilo que se mantém latente, sem se resolver em redenção ou queda, e que insiste, obstinadamente, em permanecer.
★★★★★★★★★★