A maioria dos autores brasileiros contemporâneos escreve para agradar editora, não para dizer algo

A maioria dos autores brasileiros contemporâneos escreve para agradar editora, não para dizer algo

A literatura talvez seja a manifestação artística que mais revela-nos os mistérios de nossa humana e miserável natureza. No entanto, parece que certos escritores resolveram ignorar essa função vital de seu ofício e seu potencial revolucionário para apenas corresponder às exigências do mercado editorial e fazer dinheiro. Uma cosmiatria literária toma o lugar de livros autênticos, relevantes, incômodos, num país de poucos e maus leitores. O brasileiro lê, em média, pouco mais de um par de livros por ano, segundo pesquisa do Instituto Pró-Livro —, e, portanto, editores e distribuidores precisam garantir que cada obra lançada seja minimamente rentável. Não é “a” explicação para o problema exposto neste artigo, mas é, sim, uma explicação bastante plausível.

A pressão para agradar o público e, por consequência, os editores, gera uma literatura voltada para o consenso, para o conforto. Uma literatura que, muitas vezes, evita o desconforto necessário — aquele que provoca a reflexão, o enfrentamento de ideias, o deslocamento do leitor para territórios desconhecidos. Autores que aspiram reconhecimento e publicação parecem ser compelidos a adotar fórmulas: a narrativa com começo-meio-fim bem definido, o protagonista carismático, a linguagem acessível e o engajamento político ou social que não vá “ofender” demais os leitores ou editores. As redes sociais, por sua vez, amplificam esse fenômeno: escritores se tornam influenciadores, vendem não apenas livros, mas estilos de vida, imagens de si, slogans e causas. Um fator novo, mas cada vez mais relevante, nesse cenário é a lógica do algoritmo. Plataformas como Amazon, redes sociais e até editoras com ferramentas de análise de dados passaram a interferir diretamente na produção e divulgação literária. Gêneros populares são mais promovidos, autores com grande engajamento têm mais chance de serem publicados, e o que foge à lógica do clique ou da viralização é tratado como risco. Escritores e o mercado editorial preferem o que é vendável, isto é, o que o algoritmo diz que vende. Dessa forma, a literatura cede espaço à estatística.

Outro ponto relevante nessa discussão é a formação do leitor. Se o público leitor em geral prefere obras mais leves, será por gosto próprio ou por falta de contato com outras possibilidades? A escola, infelizmente, tem contribuído pouco para formar leitores críticos. O currículo muitas vezes restringe a leitura a clássicos descontextualizados ou a listas obrigatórias, e ignora os autores contemporâneos mais ousados. Isso cria um vácuo: de um lado, jovens que não leem; do outro, adultos que buscam apenas leitura de entretenimento. O autor, ciente disso, tende a escrever pensando em um público que quer “escapar da realidade”, não enfrentá-la. Assim, em vez de usar a literatura como ferramenta de transformação, muitos escritores a tratam como anestesia.

Volto ao assunto: três em cada dez brasileiros entre quinze e 64 anos não têm o poder de digerir o que encontra nas páginas de um texto qualquer, ou seja, permanecem alheios e ignorantes à discussão dos assuntos que teriam o condão de mudar sua história. O espectro do analfabetismo funcional ronda-nos com a mesma insistência desde 2018, e pode ter se agravado com a pandemia de covid-19, na medida em que alijou estudantes pobres dos espaços públicos de letramento. Essa última informação ajuda a explicar por que, entre os vinte livros de ficção mais vendidos entre 28 de abril e 4 de maio de 2025, Colleen Hoover aparece quatro vezes. A autora de “Verity”, “O Lado Feio do Amor” e dos fenômenos “É Assim que Começa” e “É Assim que Acaba” não é, na verdade, a culpada por seu sucesso. Hoover não teria chegado lá se não fosse um empurrãozinho do tal sistema, que quer-nos todos satisfeitos com nossa estupidez.

Gente como Hoover não sobe tão alto sem a ajuda da perversa lógica editorial pós-moderna de transformar o escritor numa marca. Hoje, quem pretende ganhar a vida com literatura precisa ser carismático, engajado, presente nas redes, com posicionamentos claros (mas não radicais) e, de preferência, com uma história pessoal comovente. Os livros vêm depois, lá atrás. Isso não significa que não se possa usar redes sociais para divulgar literatura. O problema está na inversão de valores: não é mais a obra que atrai leitores, mas o autor-personagem. Escritores que não “performam” bem nas redes sociais — ou que se recusam a isso — perdem espaço, mesmo que tenham uma literatura sólida. A consequência é que muitos autores contemporâneos escrevem não apenas para agradar editoras, mas também para alimentar um personagem. E, nessa encenação constante, a literatura perde força.

Num cenário no qual a escrita virou produto (e só) e a pena tem sempre dar lucro, autores passam a escrever para agradar (e só). O papel da crítica é, ainda mais do que já fora, garimpar, distinguir o joio do trigo, exaltar a literatura que ousa. Porque, no fim das contas, a arte que sobrevive ao tempo não é a que distribui rosas, mas a que nos ensina a tentar sobreviver aos espinhos. Oxalá sobrem livros para contar essa história.

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.