Pode um homem escrever sobre mulheres? E um branco sobre um negro?

Pode um homem escrever sobre mulheres? E um branco sobre um negro?

Antes de qualquer outra coisa, a literatura é uma tentativa de compreender o mundo. Nessa tarefa, bons escritores ultrapassam os limites de suas próprias experiências, imaginando vidas, sentimentos e situações que nunca viveram. Dessa forma, surge uma questão que tem acendido debates acalorados no meio cultural e acadêmico: podem homens escrever sobre mulheres? E brancos sobre negros? Essas perguntas tocam questões morais, estéticas e políticas, que envolvem o respeito à diferença, o reconhecimento de privilégios e o papel da ficção para instruir e refinar mentalidades. O cerne da discussão está em como e por que alguém escreve sobre o outro — seja esse outro uma mulher, uma pessoa negra, indígena, gay ou que pertença a um estrato social diverso ao do autor. Escrever sobre o outro às vezes pode ser um salto no abismo.

Quando um homem escreve sobre mulheres, por mais bem-intencionado que seja, ele carrega consigo séculos de condutas que estereotiparam e silenciaram a figura feminina ou reduziram-na a papéis secundários e indignos. O mesmo vale para escritores brancos que compõem personagens negros: a história da literatura — bem como a da sociedade mesma — é marcada por apagamentos, exotizações e enganos. Portanto, não se trata de alegar que um homem jamais possa escrever a respeito de mulheres ou que um branco abstenha-se de lidar com a realidade de pessoas negras. Mas sim de admitir que essa escrita exige responsabilidade, pesquisa, escuta. É preciso estar atento aos contextos históricos, sociais e políticos em que a narrativa se insere. Imaginação não basta: é necessário entender.

Ao colocarmo-nos no lugar de outra pessoa — seja ela uma menina iraniana, um jovem negro da periferia de São Paulo ou uma idosa solitária numa comunidade ribeirinha da Amazônia —, ampliamos nossa cosmovisão. Escritores transportam-se para essas vidas ao criar esses indivíduos. Por essa razão, alguns defendem que limitar a escrita a experiências pessoais levaria a um empobrecimento generalizado, criativo e humano. Seria possível imaginar maravilhas como “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881), de Machado de Assis (1839-1908), “Mrs. Dalloway” (1925), de Virginia Woolf (1882-1941), ou “O Sol é para Todos” (1960), de Harper Lee (1926-2016) sob tais restrições? Por outro lado, há uma fronteira diáfana entre empatia e apropriação. Quando um autor da nata escreve acerca de uma suposta imersão na ignomínia do desemprego, da miséria, da fome sem ter ouvido as tão dissonantes vozes desse grupo, corre o risco de cometer equívocos titânicos e, pior, cristalizar preconceitos. Frequentemente, autores brancos escrevem sobre vivências negras e são contratados a peso de ouro por grandes editoras, recebem prêmios e são traduzidos para duzentos idiomas. Enquanto isso, escritores negros que escrevem sobre seu próprio quintal permanecem à margem, jogando água no moinho de vento da meritocracia. 

Em “Frankenstein” (1818), a britânica Mary Shelley (1797-1851) deu voz a um monstro rejeitado pela sociedade, criando uma alegoria poderosa para denunciar a hipocrisia e a solidão. No Brasil, autores como João Ubaldo Ribeiro (1941-2014) e Jorge Amado (1912-2001) criaram personagens negros e humildes valendo-se de inegável sensibilidade, embora também tenham sido alvo de reproche por certas passagens duvidosas. Por seu turno, escritoras afrodescendentes como Conceição Evaristo e Djamila Ribeiro têm mostrado como a escrita em primeira pessoa reveste de potência e verdade o que contam. A questão, portanto, não é sobre quem pode, mas sobre como se deve escrever. A liberdade de criação é um pilar sem o qual a arte vai a pique, mas essa liberdade não pode ser usada como escudo contra críticas pertinentes, malgrado ferozes em dadas circunstâncias. Quando alguém escreve sobre o outro, deve estar preparado para ouvi-lo, inclusive (ou principalmente) no caso de uma qualquer divergência.

Sim, homens podem escrever sobre mulheres e brancos podem escrever sobre negros, desde que com consciência, questionando suas convicções intolerantes, refletindo sobre seu lugar na sociedade e se perguntando seu trabalho contribui para ampliar o entendimento do outro ou apenas reforça clichês e pereniza estereótipos. Ao mesmo tempo, é fundamental que os espaços literários sejam democratizados. Que mais mulheres, negros, indígenas, homossexuais, pessoas com deficiência e de outras categorias minoritárias tenham acesso à escrita, à publicação e à leitura. Que suas vozes sejam ouvidas e respeitadas não apenas como objetos de ficção, mas como autores de sua própria narrativa. Ouvir e respeitar o outro, seja lendo ou escrevendo, ainda é um dos gestos mais revolucionários que alguém pode se permitir.

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.