O leitor sensível é o novo censor?

O leitor sensível é o novo censor?

Nas últimas décadas, o mundo editorial tem passado por transformações significativas, impulsionadas por mudanças sociais, políticas e tecnológicas. Uma das figuras que emergiu nesse novo cenário é a do leitor sensível, alguém contratado para revisar obras literárias sob a perspectiva de minorias e grupos historicamente marginalizados, com o objetivo de identificar possíveis estereótipos, preconceitos ou representações ofensivas. Embora muitos vejam essa prática como uma evolução ética no mundo literário, outros a encaram como uma forma velada de censura. 

A prática de consultar leitores sensíveis tem por alicerce os movimentos sociais por equidade e representatividade. À medida que a literatura como espelho da sociedade tornou-se mais inclusiva, aumentou também a consciência sobre como personagens e culturas são retratados. Assim, autores, editoras e produtoras passaram a contratar leitores que, por viverem determinadas realidades (como ser negro, indígena, homossexual, deficiente, entre outros), poderiam oferecer uma perspectiva mais autêntica e crítica sobre a forma como suas comunidades são representadas. Esse movimento parte do pressuposto de que a representação importa. Narrativas moldam visões de mundo, reforçam ou desmontam estigmas, criam empatia ou eternizam velhos preconceitos. O leitor sensível, nessa conjuntura, age como um consultor, não como um revisor técnico ou gramatical, mas como alguém que lê com foco em signos socioculturais e impactos simbólicos. Na prática, o trabalho do leitor sensível envolve a identificação de estereótipos nefastos, como o uso de clichês racistas, sexistas ou capacitistas; a verificação de autenticidade cultural, mirando descrições, comportamentos ou falas que possam soar forçados, irreais ou ofensivos; a sinalização de termos duvidosos, palavras que, embora socialmente aceitas no passado, hoje carregam carga pejorativa; recomendações para que o autor revise trechos, aprofunde personagens ou melhore argumentos. Vale destacar que o leitor sensível não tem poder de veto sobre uma obra. Sua função é consultiva. Somente ao autor ou à editora cabe decidir se acata ou rejeita as observações.

Apesar da função orientadora, críticas não tardaram a surgir. Muitos autores, críticos e leitores veem os leitores sensíveis como uma ameaça à liberdade artística. A maior ressalva está na ideia de que essa prática impõe limites à imaginação e à liberdade de expressão dos escritores, criando um ambiente de autocensura e policiamento ideológico. Os que se opõem argumentam que: 1) a arte deve ser livre, inclusive para ofender ou provocar; 2) a preocupação exagerada com ofensas leva a uma esterilização da literatura; 3) nem todo desconforto daquele que lê é sinônimo de erro daquele que escreve. A tentativa de agradar a todos pode produzir obras genéricas e inócuas. Desse modo, o leitor sensível é, por vezes, rotulado como um “novo censor”, alguém que, em nome da correção política, tolhe o alcance da arte e impõe uma moralidade específica (e artificiosa) à produção cultural.

Para analisar a validade da acusação de censura, é necessário estabelecer a diferença entre censura e crítica. A censura, por natureza, envolve a proibição de publicação, circulação ou exibição de conteúdos por motivos morais, religiosos, políticos ou ideológicos. Historicamente, a censura foi (e ainda é) uma ferramenta autoritária usada por Estados, igrejas ou outras instituições de poder para suprimir discursos. A crítica, por outro lado, é parte do debate público saudável. É a análise, interpretação e contestação de ideias e representações. O leitor sensível não atua com o poder de proibir uma obra, mas sim de sugerir mudanças com base em perspectivas marginalizadas. Chamar o leitor sensível de censor equivale a dizer que qualquer crítica à obra artística é censura — o que esvazia o conceito real de censura e empobrece o debate.

Embora a publicação de um livro seja um ato da mais incontestável maturidade cívica, seu conteúdo passa a se inserir, em maior ou menor grau, nas mais diversas camadas da sociedade, onde será lido, interpretado e submetido a julgamentos. Nesse contexto, o autor tem a liberdade de escrever o que quiser, mas também deve estar preparado para responder pelas reações que suas palavras fomentam. Em sendo assim, a consulta a leitores sensíveis pode ser entendida não como um filtro ideológico, mas como um gesto de responsabilidade: a disposição do autor de ouvir outras vozes, reconhecer seus próprios limites e aprimorar sua escrita. Autores prudentes reconhecem que não se pode escrever com profundidade sobre toda e qualquer experiência humana. Ouvir quem viveu aquilo a respeito do que se quer falar enriquece a obra e evita que se perpetuem equívocos.

O debate em torno do leitor sensível não se restringe ao campo literário. Ele faz parte de uma discussão maior sobre quem tem voz, quem pode representar quem, e como podemos construir uma cultura mais inclusiva sem abrir mão da complexidade e da pluralidade. O leitor sensível pode ser visto como um agente de transformação, ajudando a promover uma maior representatividade nos livros; o diálogo intercultural mais empático e civilizado; a redução de danos causados por narrativas desinformadas ou enganosas; e, claro, a educação do próprio autor, que pode crescer ao ser confrontado com novas perspectivas. Naturalmente, como qualquer ferramenta, o leitor sensível pode converter-se num mal nada necessário. Quando usado de forma autoritária, sem diálogo, ou com sub-reptícios propósitos ideológicos, ele pode mesmo contribuir para um ambiente de intimidação e autocensura. Mas isso não invalida sua existência, apenas aponta a necessidade de clareza nos papéis e ética na atuação.

O leitor sensível não é o novo censor, mas um reflexo de uma sociedade em transformação, que busca dar voz a grupos historicamente silenciados. Sua função é ampliar, e não restringir, a liberdade artística — desde que essa liberdade seja exercida de maneira responsável. A literatura é, por excelência, um campo de tensões e debates. E isso é bom. Ao invés de temer o leitor sensível, autores e leitores podem vê-lo como um aliado na construção de narrativas mais ricas, mais autênticas e mais conscientes. No fim, a pergunta mais produtiva talvez não seja se o leitor sensível é censor, mas como ele pode contribuir para uma literatura mais potente, ética e plural. Essa resposta dependerá, sempre, do modo como escolhemos escutá-lo.

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.