Desde os primórdios da civilização, o ser humano tem buscado formas de expressar suas emoções, registrar suas memórias, transmitir seus conhecimentos e imaginar futuros possíveis. Entre as muitas ferramentas desenvolvidas ao longo do tempo, poucas se mostraram tão poderosas, duradouras e transformadoras quanto a literatura. Muito mais do que uma manifestação artística, a literatura é, antes de tudo, uma força essencial da vida, um campo simbólico onde a existência humana reinventa-se e se compreende. A literatura é, em essência, o reflexo mesmo da condição humana. Por meio de vocábulos, o homem registra suas angústias, esperanças, sonhos e dilemas, transformando-as em prosa, poesia e ensaio. Tempos de repressão política e censura dos indivíduos prestam-se à conjuntura irretocável para que a literatura apresente-se como um poderoso expediente de resistência. Escritores e poetas, mesmo sob risco de perseguição, têm usado sua pena a fim de denunciar injustiças e manter acesa a chama da liberdade.
Uma das maiores virtudes da literatura é a sua capacidade de fomentar a empatia. Ao colocarmo-nos no lugar de personagens tão diferentes de nós, somos convidados a experimentar o mundo sob outra perspectiva. Esse exercício de alteridade é fundamental para a construção de sociedades mais justas, tolerantes e humanas. A vida, como sabemos, é repleta de desafios, perdas, frustrações e solidão. Em muitos desses casos, a literatura surge como uma fonte de consolo. A literatura tem o poder de nos lembrar de que não temos de sentir-nos assim tão descorçoados. Obstáculos com que nos deparamos já foram vividos por gente que jamais viremos a conhecer. Essa comunhão tácita entre público e autor, muitas vezes apartados por séculos, é uma das maneiras mais profundas de conexão humana. Além disso, a literatura é uma fonte inesgotável de esperança. Mesmo nos enredos mais sombrios, há sempre uma centelha de luz, um gesto de humanidade, um final aberto que convida à esperança.
Por todas essas razões, não é difícil gostar mais de livros do que de certas pessoas. Na lista que segue, pinçamos sete filmes que refletem as obras literárias de que nasceram ou discorrem, de uma maneira ou de outra, acerca da magia avassaladora das palavras, casos de “Hamlet” (1948), o clássico dirigido por Laurence Olivier (1907-1989) a partir da peça homônima levada aos palcos por Shakespeare em 1601, um dos cânones da literatura e da arte dramática ocidental, no primeiro grupo, e de “O Leitor” (2008), de Stephen Daldry, na segunda categoria. “Livros, livros à mancheia”, diria o poeta baiano Castro Alves (1847-1871). Filmes, filmes sobre livros, completo eu.

Por que continuamos a falar de “O Planeta dos Macacos” na terceira década do século 21? Talvez nem Franklin J. Schaffner (1920-1989), diretor do primeiro longa de uma das mais inspiradas franquias da história do cinema, soubesse responder, porém fica mais fácil atingir-se uma conclusão satisfatória no momento em que se compara a série de filmes inaugurada por Schaffner em 1968 com outras produções em série que avançaram por décadas sem, no entanto, ir além da superfície — apesar de estarem assentadas sobre uma montanha de centenas de milhões de dólares. “Planeta dos Macacos: O Reinado”, o colosso de tecnologia dirigido por Wes Ball, partiu de 129 milhões de dólares na estreia nas salas de projeção de todo o mundo e alcançou 230 milhões nas bilheterias até sair de cartaz e dominar o streaming pouco tempo depois, mas não é nisso que o espectador pensa quando depara-se com um enredo cheio de reviravoltas, distribuídas em sequências nada menos que impecáveis, e não só pelo uso da captura de performance, um expediente que confere mais precisão aos movimentos dos atores. Exatamente como dava a entender o francês Pierre Boulle (1912-1994) no romance homônimo publicado em 1963.

Ninguém ousava desafiar a autoridade paterna no Reino Unido do começo do século 19, por mais sombrias que fossem as consequências dessa submissão sem limite e nada convicta. A escritora britânica Jane Austen (1775-1817) foi uma das artistas que melhor retratou esse lado obscuro da sociedade em que viveu, dando origem a uma narrativa caudalosa, que se espraiou em três volumes. O último deles, “Persuasão” (1816), marca o fim da trilogia e da obra literária da autora, que morre em 18 de julho de 1817, aos 42 anos, vítima do mal de Addison, uma doença autoimune a respeito da qual nada se sabia duzentos anos atrás. Resta inacabado “Sanditon”, em que Austen confirma a predileção por esquadrinhar as pequenezas da burguesia da Velha Inglaterra, algo que fez como ninguém. Adaptado para o cinema pela primeira vez há quase trinta anos, em 2022 “Persuasão” torna à vida pelas mãos de Carrie Cracknell, que fez carreira no teatro e agora mostra excelência também na realização de filmes. É óbvia a interseção entre seu ofício de origem e o novo meio que abraça, a começar pela opção de fazer a protagonista falar diretamente à câmera, recurso usado à farta no teatro. A derrubada da quarta parede é, sem dúvida, um expediente que aproxima (demais) público e atores, mas Cracknell é muito competente ao empregá-lo ao mesclar essas entradas individuais com longas passagens do texto profuso de Austen, roteirizado pela estreante Alice Victoria Winslow e o veterano Ron Bass.

“A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata”, dirigido por Mike Newell, é uma comovente adaptação do romance homônimo escrito por Mary Ann Shaffer e Annie Barrows. Ambientado na Ilha de Guernsey logo após a Segunda Guerra Mundial, o longa conta a história de Juliet Ashton, uma escritora londrina que busca inspiração para um novo livro. Ao receber uma carta de um habitante da ilha, Dawsey Adams, que a conhece através de um livro usado que pertenceu a ela, Juliet descobre a existência de uma sociedade literária criada durante a ocupação nazista. Intrigada, ela decide visitar a ilha e acaba se envolvendo profundamente com os membros do grupo, cada um com sua própria história marcada pela guerra, dor, amor e resistência. A trama se desenrola com sensibilidade, mostrando como os livros foram uma válvula de escape para os horrores vividos pelos moradores, e como a literatura pode unir pessoas em tempos difíceis. A história é também um mergulho nas consequências emocionais da guerra, mas com uma aura de esperança e renovação. Com uma fotografia impecável, figurinos de época e atuações marcantes — especialmente de Lily James como Juliet — o filme equilibra drama, romance e leveza. A narrativa emociona por sua simplicidade e humanidade. No fim, A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata é uma ode à amizade, à coragem e ao poder transformador da literatura.

Em algumas circunstâncias, o passado é como um monstro que pensamos encerrar numa gaiola de ouro, o nutrindo e acalentando, até que ele, afinal, revela sua verdadeira força. A paixão eminentemente lúbrica de um menino por uma mulher quase vinte anos mais velha tem todos os componentes para não dar certo, e em juntando-se a esse relacionamento explosivo um insuperável despenhadeiro ideológico e moral, restam pouquíssimas chances de que golpes mútuos não acabem em destruição. Retrato dos choques do corpo com a alma, da necessidade com a honra, “O Leitor” é, grosso modo, um tratado epistemológico sobre a importância das escolhas, que, não raro, tornam-se maldições a pairar sem trégua acima de espíritos frágeis. A direção segura de Stephen Daldry transforma as páginas do romance homônimo do alemão Bernhard Schlink, publicado em 1995, num drama de guerra manifestamente ambíguo, onde quase nada é o que parece e não é prudente classificar ninguém como inocente ou culpado de pronto. “O Leitor” é uma analogia bastante sutil que tenta explicar a força do acaso na vida do homem, sem chegar a nenhuma conclusão monolítica — e aí está sua superioridade e sua beleza. Todos temos vergonhas a esconder, mas é necessário coragem para dizê-lo, sobretudo em tempos de moralidade artificiosa, em que tudo, absolutamente tudo, é motivo para condenações. Justas ou não.

Obra-prima que é, “O Iluminado” continua a ser um dos melhores filmes de todos os tempos. Quando começa a escutar a admirável trilha do maestro polonês Krzysztof Penderecki (1933-2020), criada a partir de trechos de obras de gênios do quilate de Béla Bartók (1881-1945), Hector Berlioz (1803-1869) e György Ligeti (1923-2006), o espectador começa a ser envolvido numa bruma densa de mistério e apreensão que, mesmo sem saber onde vai dar, sugere qualquer coisa de macabro. Nunca se fica indiferente ao talento de Stanley Kubrick (1928-1999), e aqui, o cineasta faz justiça à fama e oferece um espetáculo completo, ocultando nas entrelinhas a brutalidade do que quer dizer. A cada vez que se assiste a “O Iluminado”, descobre-se, como se dá com todo clássico, algo de novo, quiçá de transformador, de assombroso em sua originalidade, predicados que juntam-se à coragem de um diretor que dominava seu ofício como poucos. História COM fantasmas, e não DE fantasmas, o enredo usa o cenário assustador como um imenso labirinto, onde somos jogamos como a família disfuncional que protagoniza esse conto de terror iconoclasta e circular, no qual tudo está sempre escancarado — embora se custe a acreditar no que Kubrick pretende transmitir. Preciosistas acusaram Kubrick de oportunismo, acusando-o de ter partido do argumento central do romance de terror psicológico, publicado por Stephen King em 1977, e ter distorcido tudo a seu talante, o que leva alguns à estapafúrdia ideia de plágio. O que Kubrick faz é apenas adaptar a linguagem kinguiana, já essencialmente fílmica, encaixando-a no ambiente que se vê, princípio básico (e óbvio) da arte cinematográfica.

Passada uma década, um guerreiro volta de uma série de batalhas em que combatia a fim de manter a Terra Santa sob domínio cristão, as Cruzadas (1095-1291) e se depara com o país assolado por uma praga, a peste negra. Habilidoso como ninguém quanto a expor as tantas fraquezas do homem à luz do conhecimento filosófico, Ingmar Bergman (1918-2007) fala sobre a hesitação mesmo do mais nobre dos indivíduos ante cenários desfavoráveis, lúgubres, miseráveis, amaldiçoados pela Morte, que em “O Sétimo Selo” adquire status de personagem e deseja, como sói acontecer, abreviar as pelejas do herói, que, mesmo negando, por completo descrente de tudo e tomado pelo cansaço da vida, anseia mesmo por sua última viagem. Na undécima hora, reconsidera e propõe à sua oponente um desafio no tabuleiro de xadrez: se perder, vai-se com ela, que topa a parada, afinal desde o princípio dos tempos nunca perdeu uma aposta. Na trama, o gênio de Bergman, tal como o Tolstói (1828-1910) de “A Morte de Ivan ÍIitch”, publicado em 1886, dirige ao espectador a pergunta que cala mais fundo sobre a alma de um indivíduo. O que fazer diante da finitude, única certeza a reger a vida?

“Hamlet”, escrita por William Shakespeare (1564-1616) entre 1599 e 1601, é uma das tragédias mais influentes da literatura ocidental. A peça narra a história do príncipe Hamlet, da Dinamarca, que busca vingar a morte de seu pai, o rei, assassinado pelo próprio irmão, Cláudio, o novo monarca e casado com Gertrudes, mãe de Hamlet. O enredo é marcado por conflitos internos, traições e reflexões filosóficas sobre a vida, a morte e o sentido da existência. A dúvida é um dos temas centrais da obra. Hamlet hesita em agir, questionando a moralidade da vingança e a veracidade das aparições de seu pai. Essa indecisão o leva a fingir loucura, confundindo seus inimigos e o público. A célebre frase “Ser ou não ser, eis a questão” revela a profundidade de sua angústia existencial. O drama também aborda temas como corrupção, aparência versus realidade e a fragilidade humana. A trama se intensifica com a morte de Polônio, o sofrimento de Ofélia e a traição dos amigos Rosencrantz e Guildenstern. No desfecho trágico, quase todos os personagens principais morrem, incluindo Hamlet, que só alcança a verdade e a paz no momento de sua morte. “Hamlet” permanece atual por sua complexidade psicológica e profundidade filosófica. É uma obra que convida à introspecção e ao questionamento da condição humana, sendo considerada uma das maiores criações de Shakespeare e da dramaturgia mundial, e a performance de Laurence Olivier (1907-1989), revigora o enredo com sofisticação e técnica.