Ao longo da história da arte e da comunicação, literatura e cinema disputaram, por vezes num silêncio venenoso, a primazia na formação estética, cultural e semiótica das sociedades modernas. A literatura, arte milenar, consolidou-se como veículo de conhecimento, reflexão e imaginação desde os primórdios, nascendo do amálgama das pinturas rupestres em cavernas e as narrativas dos primeiros grupos de homo sapiens à volta de uma fogueira. Ao conferir movimento à inaudita mistura, o cinema, uma das expressões mais vistosas da criatividade humana, conquistou rapidamente as massas, redesenhou os modos de contar histórias e promoveu uma revolução sensorial. A discussão sobre a superioridade de um sobre o outro é, portanto, não apenas válida, mas necessária, sobretudo diante do crescente protagonismo do audiovisual na vida pós-moderna.
Cinema e literatura sempre hão de ter suas muitas diferenças, e é bom que assim o seja. Enquanto a literatura depende exclusivamente da linguagem verbal e da imaginação do leitor para transmitir significados, o cinema agrega múltiplas formas de expressão: imagem, música, fotografia, luz, montagem, figurino. Trata-se, como defendia o cineasta russo Sergei Eisenstein (1898-1948), de uma “arte total”, capaz de juntar as principais manifestações artísticas numa única estrutura narrativa. Isso confere ao cinema uma vantagem expressiva, porque dessa forma tem o condão de impactar diferentes sentidos do espectador num só golpe, criando experiências mais imersivas e emocionalmente intensas. Além disso, o cinema opera com uma temporalidade controlada: a duração de uma obra fílmica é previamente determinada e a apreensão do público é conduzida mediante alguns critérios. Isso permite ao diretor manipular o tempo, gestos e os olhares com precisão cirúrgica, fomentando atmosferas e sensações de modo que a literatura, mesmo em suas formas mais sofisticadas, dificilmente alcança. A literatura sugere; o cinema mostra. A literatura ensina a pensar, mas o cinema ensina a ver — e, hoje, aprender a ver é quase tão importante quanto a leitura.
Essa capacidade de síntese interdisciplinar prova que o cinema não é um gênero derivado, mas uma arte autônoma, capaz de dialogar com a literatura e, em muitos casos, até superá-la. Enquanto a literatura exige do leitor o esforço de decodificar e visualizar, o cinema elabora de forma objetiva uma representação do mundo, tão real quanto possível, para lembrar Platão (428 a.C — 348 a.C). O cinema comunica de forma mais imediata, mais pulsante e, por essa razão, mais eficaz em determinados contextos. A literatura, por sua natureza contemplativa e por depender da lentidão do processo de leitura e, o mais importante, interpretação, tornou-se, para muitos, uma “arte de nicho”. Isso não significa sua morte, mas sua diminuição relativa na hierarquia das expressões culturais contemporâneas. Na verdade, o mais produtivo talvez não seja opô-los de forma radical, mas reconhecer que o cinema, mesmo nascendo depois da literatura, assumiu papel de destaque na produção cultural moderna. Não se trata de substituir, mas de poder fazer escolhas.
Na lista abaixo figuram sete histórias que, em maior ou menor proporção, nasceram de livros e deram em filmes muito mais perturbadores, estimulantes, líricos. É o caso de “À Espera de um Milagre” (1999), de Frank Darabont, a história de um equívoco que acha o meio ideal para prosperar, e o vem fazendo transcorrido quase um século. Também a isso presta-se essa coisa brilhante chamada cinema: como documento vivo de um passado que às vezes não passa.

Já houve um tempo em que ser mulher era uma batalha de todo santo dia. Ter o respeito da própria família, dos amigos, da comunidade, do Estado passava por fazer tudo quanto os homens mandavam, primeiro o pai e os irmãos, depois os professores e quando se concluíam os anos de estudo destinados a seu gênero, casar-se com o marido que escolheram para ela, o homem a quem teria de obedecer para o resto da vida, seu senhor e seu dono, a quem deveria prestar contas até de seus sonhos mais obscuros. Uma garota selvagem da Carolina do Norte suporta os desmandos de uma existência de privações no que pode haver de mais básico até que começa a virar a mesa, pagando um preço alto por sua liberdade. “Um Lugar Bem Longe Daqui”, a adaptação de Olivia Newman para “Where the Crawdads Sing”, o romance da americana Delia Owens, publicado em 2018 e traduzido com o mesmo título que o filme, é o grito de socorro de um espírito atormentado, mas não só. O roteiro de Owens e Lucy Alibar oscila entre três fases da história de Catherine Danielle Clark, a Kya, nos pântanos da fictícia Barkley Cove, escapando de um pai bêbado e abusivo para cair nas mãos de um pretendente que a ilude com juras de amor que não pode cumprir até que sobrevenha-lhe a desgraça que por pouco não a arruína. Alibar também roteirizou, com Benh Zeitlin, “Indomável Sonhadora” (2012), dirigido por Zeitlin e baseado no livro de contos de Doris Betts (1932-2012), e, por mais original que consiga ser, o trabalho de Newman reflete essas outras histórias de mulheres aprisionadas em sua condição feminina, o que fortalece seu propósito.

Alice Howland tinha tudo, uma carreira respeitada, um marido que a ama, filhos independentes e amorosos e a perspectiva concreta uma velhice serena. Seu mundo cor-de-rosa começa a desmoronar quando, pouco depois do 50º aniversário recebe o diagnóstico de Alzheimer precoce, na esteira melancólica e aflitiva de eventos como não conseguir lembrar-se do que pretendia dizer durante uma palestra na Universidade de Columbia, onde trabalha como professora de linguística, ou perder-se ao fim de uma corrida pelo câmpus, ou ainda espalhar objetos pela casa e guardar o xampu no refrigerador e ter de ir ao Google para fazer a receita de pudim de pão para o jantar da noite de Ação de Graças. Muito do encanto e da poesia lôbrega de “Para Sempre Alice” deve-se à personagem-título, encarnada por Julianne Moore com o rigor e a sensibilidade costumeiros. A adaptação do romance homônimo da neurocientista americana Lisa Genova por Richard Glatzer (1952-2015) e seu parceiro Wash Westmoreland mira Alice e acerta os cinquenta milhões de pessoas no mundo que vivem com alguma doença degenerativa do sistema nervoso, sendo o Alzheimer a modalidade mais comum, para não contar os familiares, amigos e colegas dessas pessoas.

Fernando Meirelles enxergou em Joana, a protagonista de “Perto do Coração Selvagem” (1943), o queixo de Dadinho, autometamorfoseado em Zé Pequeno, e a partir dessa feitiçaria clariceana, o público depara-se com os segredos por ainda serem revelados da autobiografia de Paulo Lins, do filme e do país que agrupa-nos todos, Clarices, Paulos, Fernandos, numa miséria para muito além do lado oeste da capital fluminense. O romance inaugural da prolífica carreira de Clarice Lispector (1920-1977) tem inauditos pontos de contato com “Cidade de Deus”, um arrazoado de percepções de Lins sobre a favela homônima em que morou durante a infância pobre. O roteiro de Bráulio Mantovani contrapõe Dadinho a Zé Pequeno e os dois a Buscapé, no movimento perturbador e estimulante que denota um refinamento narrativo cada vez mais bissexto em produções nacionais. Para traduzir isso em imagens, Meirelles socorre-se da tarimba dos muitos anos como diretor de comerciais de televisão para inventar suas próprias técnicas — foi assim que registrou o inusitado encontro entre Zé Pequeno e Buscapé, com Leandro Firmino da Hora e Alexandre Rodrigues em performances memoráveis, que, por ser o Brasil o que é, nunca mais tiveram a oportunidade de replicar. Tramas como essa seguem atuais num país que produz Clarice Lispector, Paulo Lins e Fernando Meirelles, mas não é capaz de renunciar à indiferença fácil de elites bestializadas e algo fascinadas com delinquentes de todos os coturnos.

Ser negro nos Estados Unidos continua difícil, mas na Louisiana da década de 1930 os fantasmas do preconceito eram muito mais tangíveis e muito mais assustadores. Ter na pele a cor errada poderia ser a diferença entre viver e pagar com a morte pelos crimes que não ficavam bem para brancos, premissa de que Frank Darabont extrai todo o sumo de lúgubre poesia em “À Espera de um Milagre”, a história de um equívoco que acha o meio ideal para prosperar, deixando um rastro de tristeza indignada e muda na vida de dois homens de universos diversos obrigados a conviver na pior das circunstâncias, olhando-se bem fundo e se reconhecendo um no outro. Na esperta adaptação do romance homônimo de Stephen King, publicado em 1996, o diretor ransporta o público para o ambiente claustrofóbico que a fotografia de David Tattersall torna quase massacrante, não fosse por um detalhe até pueril em sua singeleza. O roteiro de Darabont e de King vale-se dessas sugestões quase misteriosas a fim de avivar no espectador a inquietação diante de uma vida feita para todo gênero de castigos, que não se liberta nem com o socorro de uma alma genuinamente misericordiosa.

O que terá a primazia, a loucura sobre a solidão, ou, ao contrário, a solidão, pungente, intensa e à prova do tempo, acaba se metamorfoseando em algo ainda mais nefasto, como a doença mental? Na primavera de 1967, Susanna Kaysen, a personagem de Winona Ryder em “Garota, Interrompida” (1999), vai parar no que até não muito tempo atrás chamar-se-ia hospício — palavra cancelada pelo politicamente correto, que acha que cancelar manifestações genuínas de certos fenômenos, inclusive linguísticos, resolve problemas os mais complexos —, mas um hospício de luxo, Claymoore. Tomando por base o diário de Kaysen, cujos relatos verídicos convergem para a conclusão de que ela nunca teve um distúrbio psiquiátrico que a impossibilitasse de continuar privando do convívio social, o roteiro do diretor James Mangold, coescrito por Lisa Loomer e Anna Hamilton Phelan, destrincha boa parte das perdas de Susanna ao longo dos dois anos da permanência em Claymoore. Continuar internada, quiçá para sempre, é mais fácil, mas não é justo, nem com ela, nem com quem necessita mesmo de tal assistência. Ryder e Angelina Jolie são claro, a cereja do bolo num filme quase perfeito, que carece de um tanto do que Freud denominou como pulsão de vida.

Obra-prima que é, “O Iluminado” continua a ser um dos melhores filmes de todos os tempos. Quando começa a escutar a admirável trilha do maestro polonês Krzysztof Penderecki (1933-2020), criada a partir de trechos de obras de gênios do quilate de Béla Bartók (1881-1945), Hector Berlioz (1803-1869) e György Ligeti (1923-2006), o espectador começa a ser envolvido numa bruma densa de mistério e apreensão que, mesmo sem saber onde vai dar, sugere qualquer coisa de macabro. Nunca se fica indiferente ao talento de Stanley Kubrick (1928-1999), e aqui, o cineasta faz justiça à fama e oferece um espetáculo completo, ocultando nas entrelinhas a brutalidade do que quer dizer. A cada vez que se assiste a “O Iluminado”, descobre-se, como se dá com todo clássico, algo de novo, quiçá de transformador, de assombroso em sua originalidade, predicados que juntam-se à coragem de um diretor que dominava seu ofício como poucos. História COM fantasmas, e não DE fantasmas, o enredo usa o cenário assustador como um imenso labirinto, onde somos jogamos como a família disfuncional que protagoniza esse conto de terror iconoclasta e circular, no qual tudo está sempre escancarado — embora se custe a acreditar no que Kubrick pretende transmitir. Preciosistas acusaram Kubrick de oportunismo, acusando-o de ter partido do argumento central do romance de terror psicológico, publicado por Stephen King em 1977, e ter distorcido tudo a seu talante, o que leva alguns à estapafúrdia ideia de plágio. O que Kubrick faz é apenas adaptar a linguagem kinguiana, já essencialmente fílmica, encaixando-a no ambiente que se vê, princípio básico (e óbvio) da arte cinematográfica.

Os costumes mudaram tanto que “O Exorcista” até pode ser considerado um filme de época. A maneira quase heroica como William Friedkin (1935-2023) traduziu uma pletora de assuntos somente vistos à luz do excêntrico, da bizarria, do tabu e, por óbvio, do preconceito soa hoje como mero oportunismo — o que não deixa de ter seu fundo de verdade —, mas o diretor, um dos poucos em Hollywood que assumem sua paixão pelo que a vida tem de mais inadequado, não permite que a história resvale no ordinário, alertando seu público, mesmo que inconscientemente, para a universalidade do mal, um mal que ninguém é capaz de dominar, confundido com paranoia, histeria, depressão severa, dependência química em estágio avançado e as tantas outras variações de moléstias que interditam o livre-arbítrio do homem, e o cerca no terreno do sobrenatural. Com efeito, o argumento central de “O Exorcista”, da mesma forma que em qualquer produção congênere, concorre para a apreciação de temas facilmente explicáveis sem o auxílio da parapsicologia, o que a novela de William Peter Blatty (1928-2017) deixa muito claro. Publicado em 1971, a grande iluminação de “O Exorcista” é saber harmonizar os elementos do terror puro a suas possíveis justificativas lógicas, predicado que facultou ao autor a versão do texto escrito para a tela, onde Friedkin mantém, um por um, os dilemas morais e a derruição do espírito de seus personagens, lutando contra um inimigo poderoso e covardemente astuto, que usa as armas que suas vítimas não sabem que têm.