Último dia para assistir: Blade Runner 2049, a obra-prima de Denis Villeneuve, está de saída da Netflix Divulgação / Sony Pictures

Último dia para assistir: Blade Runner 2049, a obra-prima de Denis Villeneuve, está de saída da Netflix

Não é a resposta que transforma o mundo: é a pergunta errada. As grandes revoluções de pensamento começam não com soluções definitivas, mas com dúvidas incômodas, que invadem o senso comum como um vírus. Philip K. Dick entendeu isso antes de todos. Em seus delírios proféticos, entre a paranóia e a ficção, previa o que ninguém queria encarar: que a realidade é frágil, e a identidade, instável. Em sua última entrevista, à “The Twilight Zone Magazine”, ele se comportava como um garoto à espera do baile de formatura, cogitando alugar um smoking — vestimenta tão improvável para quem preferia jeans rasgados — para a estreia de um filme que ainda não existia, mas que prometia catapultá-lo da obscuridade marginal à eternidade pop. Era sua consagração iminente, uma consagração que o deixava ridiculamente entusiasmado.

No entanto, essa reverência tardia à Hollywood não nasceu de amor à primeira vista. Quando descobriu que os direitos de “Do Androids Dream of Electric Sheep?”, seu romance mais potente, haviam sido vendidos sem sua autorização, Dick reagiu com o desdém de quem vê sua ideia ser sequestrada. A bordo de um aeroporto, atirou a primeira frase com um misto de ironia e fúria: “Devo te agredir aqui ou no meu apartamento?”. Estava prestes a confrontar o produtor responsável pela negociação — ou, ao menos, o filho dele, encarregado de adaptar o livro. Mas o impasse se dissolveu quando Michael Deeley assumiu o projeto e escalou Ridley Scott para dar forma ao que viria a ser “Blade Runner”, lançado em 1982. Assim nascia, sem alarde, um dos filmes mais debatidos da história do cinema moderno.

Por mais de três décadas, “Blade Runner” flutuou entre dois mundos: o do culto restrito e o do cânone adiado. Não foi imediatamente abraçado como um clássico, tampouco ignorado como obra menor. Sobreviveu ao tempo não pela unanimidade — essa nunca veio —, mas pelo atrito que causava. Era sofisticado demais para os que queriam ação, sombrio demais para os que esperavam aventura, filosófico demais para os impacientes. O tempo, no entanto, tratou de vingar suas complexidades. O que antes era impopular tornou-se referência estética e narrativa, espécie de relíquia suja que só os mais atentos conseguiam decifrar.

Em 2017, “Blade Runner 2049” se recusou a ser sombra do original. Em vez de tentar imitá-lo, decidiu enfrentá-lo. O enredo, amparado por personagens que não são apenas peças de uma engrenagem, mas dilemas pulsantes de existência e memória, manteve-se fiel à matriz conceitual de Dick sem jamais soar imitativo. Ryan Gosling, em estado de contenção milimétrica, encarna KD6-3.7 — ou apenas K —, um agente encarregado de “aposentar” androides antigos que, ao ultrapassarem sua data de validade, confundem-se com humanos e ameaçam a ordem social. Um executor que é também potencial alvo; um autômato que deseja ser homem; um ser que vive da negação da própria espécie.

Seria fácil que o filme escorregasse no lugar-comum das sequências melancólicas, dessas que apenas reciclarem o que já deu certo. Mas Denis Villeneuve, à frente da direção, evita a armadilha com elegância rara. Tendo recusado Ridley Scott o posto — alegando compromissos financeiros mais imediatos — coube ao canadense a tarefa de continuar uma história que já parecia encerrada. O fez com precisão. Sua filmografia já indicava esse apetite por narrativas densas e visualmente arrebatadoras: “Os Suspeitos”, “Sicario”, “A Chegada”. Em “Blade Runner 2049”, ele constrói um universo frio e brutal, mas de uma beleza que hipnotiza. O filme estreou no Brasil antes dos Estados Unidos — uma raridade — e chegou como uma nave silenciosa, que não prometia espetáculo, mas inquietação.

A verdadeira trama, no entanto, não se desenrola apenas nos becos iluminados por néon ou nos voos rasantes das naves. Ela se instala no conflito interno de K. Replicante de última geração, ele sabe que não é humano — mas também não consegue aceitar o que isso significa. Quando passa a perseguir Rick Deckard, personagem central do filme de 1982, tudo se intensifica. Deckard é o espelho do que K gostaria de ser: alguém que sobreviveu ao esquecimento, à caça, ao colapso. Alguém que, mesmo exilado, ainda é sujeito de si. K, por sua vez, tem como única companhia afetiva uma namorada digital — Joi — programada para amá-lo incondicionalmente, mas incapaz de sair do campo da simulação. O desejo por autenticidade vira agonia.

A reflexão filosófica que permeia o longa se ancora no existencialismo. Inspirado por Kierkegaard e desenvolvido por Sartre e Beauvoir, esse pensamento coloca a existência antes da essência: não se nasce algo, torna-se. E K, embora fabricado, anseia por vivências que o transformem em alguém. Só ao recuperar a lembrança de um brinquedo de infância — um cavalo de madeira — começa a perceber que talvez tenha tido um passado. Ou, ao menos, a ilusão necessária para reivindicar identidade. Essa lembrança fragmentada passa a ser sua senha para sonhar, ainda que o sonho seja um erro.

Visualmente, “Blade Runner 2049” é um monumento. A fotografia assina o filme como um personagem à parte, sustentando, sozinha, o peso de quase três horas de projeção. A estética não serve de enfeite: ela é a linguagem do desespero, o reflexo de uma sociedade que se afoga em sua própria tecnologia. Assim como o primeiro “Blade Runner”, esta continuação se ancora no noir futurista, onde a distopia deixou de ser ameaça para se tornar rotina. Não há esperança no horizonte, apenas poeira, ruínas e luzes artificiais que piscam para ninguém. O fim já aconteceu — resta saber se alguém ainda se importa.

Filme: Blade Runner 2049
Diretor: Denis Villeneuve
Ano: 2017
Gênero: Ação/Ficção Científica
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★