Produzido por Denzel Washington e dirigido por seu filho, Malcolm Washington, “Um Piano de Família” é uma obra que transcende as barreiras de um simples drama familiar, explorando temas profundos como ancestralidade, identidade e ressignificação do passado. Baseado na peça “A Lição de Piano”, de August Wilson – o mesmo gênio criativo por trás de “Fences: Um Limite Entre Nós” e “A Voz Suprema do Blues” — o longa captura com maestria as complexidades emocionais e espirituais que cercam um herança familiar carregada de história e sofrimento.
No centro da narrativa está um piano ancestral, herdado pelos irmãos Berniece (Charity Jordan) e Boy Willie (John David Washington). A disputa sobre o destino do instrumento revela um conflito profundo: Berniece enxerga no piano um artefato sagrado, repleto de memórias e conectado aos espíritos de seus antepassados, enquanto Boy Willie o vê como uma oportunidade de progresso material. Ele acredita que vender o piano lhe permitiria adquirir uma terra que outrora pertenceu ao senhor de escravos que oprimiu sua família — uma forma simbólica de redenção.
Conforme o conflito se intensifica, a história do piano é revelada por Doaker (Samuel L. Jackson), tio dos irmãos, em uma narrativa que mergulha o espectador em uma dolorosa jornada pelo passado. O instrumento, originalmente pertencente à família Nolander, foi adquirido pelo senhor de terras Robert Sutter como presente para sua esposa, Ophelia. Sem recursos financeiros, Sutter ofereceu dois escravos — uma jovem chamada Mama Berniece e seu filho pequeno — em troca do piano. Quando a saudade dos escravos levou Ophelia a adoecer, Sutter buscou consolo nas habilidades de Willie Boy, marido de Mama Berniece e exímio carpinteiro. Ele foi convocado para entalhar no piano as figuras de Ophelia, Mama Berniece e do filho, mas decidiu ir além, registrando também a história completa de sua família nas delicadas marcas da madeira.
Essa arte transformou o piano em algo muito maior do que um simples objeto: tornou-se um registro vivo de dor, resistência e memória. Anos mais tarde, Boy Charles, pai de Berniece e Boy Willie, roubou o piano da casa de Sutter, mas foi morto durante sua fuga. O instrumento, porém, permaneceu com a família como um poderoso símbolo de seu legado.
A trama avança enquanto os irmãos confrontam suas crenças e dores, até que um momento decisivo leva Berniece a tocar o piano pela primeira vez. Esse gesto não é apenas uma ação musical; é um chamado espiritual, um reconhecimento de sua herança e uma aceitação das feridas do passado. Ao invocar os espíritos de seus ancestrais, ela encontra força para superar traumas e renovar os laços com sua família, em uma cena de rara intensidade e beleza emocional.
Malcolm Washington conduz a narrativa com uma sensibilidade que combina misticismo, história e emoção. Sua direção extrai performances arrebatadoras de um elenco que se entrega completamente aos personagens, com destaque para Charity Jordan e John David Washington, que traduzem com profundidade as complexas dinâmicas entre os irmãos. Samuel L. Jackson, como Doaker, oferece uma presença marcante e cheia de gravidade.
Mais do que um drama familiar, “Um Piano de Família” é uma celebração da memória coletiva e da força dos laços ancestrais. O filme transcende o entretenimento, oferecendo uma experiência cinematográfica que reverbera muito além da tela. Com uma direção impecável, roteiro poderoso e atuações memoráveis, esta é uma obra que se consolida como uma contribuição essencial ao cinema contemporâneo, lembrando-nos da importância de honrar nossas raízes e aprender com o passado para construir um futuro mais pleno.
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