Aventura de Tim Burton vai te fazer refletir sobre autenticidade e autoaceitação, na Netflix Divulgação / Twentieth Century Fox

Aventura de Tim Burton vai te fazer refletir sobre autenticidade e autoaceitação, na Netflix

Tim Burton, mestre em criar mundos que transitam entre o macabro e o fantástico, assume um projeto que mistura perda e descoberta, “O Lar das Crianças Peculiares”. Baseado no romance de Ransom Riggs, publicado em 2011, o filme não apenas adapta as páginas do livro, mas enriquece sua narrativa com a estética inconfundível do cineasta. É nesse cenário de memórias e mistérios que Jake Portman, vivido por Asa Butterfield, se encontra após a morte de seu avô Abe, uma figura que sempre o encantou com histórias de um passado extraordinário. Mas, ao contrário do que poderia parecer uma simples fábula, a perda do avô acaba se tornando o ponto de partida para uma jornada repleta de revelações sombrias e maravilhosas.

Cineastas como Bergman, Fellini e Guadagnino já exploraram o impacto das lembranças em suas obras, mostrando o poder da memória na formação de identidade e no amadurecimento de seus personagens. Burton, por sua vez, embarca nesse mesmo tema, mas o trata com uma fantasia singular, onde o luto de Jake é amenizado por descobertas que transcendem o tempo. No centro desse enredo está a busca do protagonista por respostas e, em última instância, por um sentido diante da ausência do avô. O roteiro de Jane Goldman habilmente costura essas questões emocionais ao longo da narrativa, enquanto conduz Jake a um segredo que permaneceu oculto por quase oito décadas.

Em situações extremas, a linha entre infância e maturidade torna-se tênue. A experiência do protagonista ilustra essa transição de maneira sensível e intrigante, mesclando ingenuidade e coragem em doses equilibradas. A postura desarmada de Jake diante de eventos que desafiariam qualquer adulto é o que o mantém firme. Essa dualidade é essencial para compreendermos como o filme retrata a adaptação a um novo e, por vezes, ameaçador mundo. Ao mesmo tempo, a história nos lembra que, mesmo em meio a provações severas, a pureza e a capacidade de se maravilhar com o desconhecido ainda podem ser preservadas, oferecendo um leve alívio à carga emocional.

Traumas vividos na infância tendem a moldar nossa percepção da vida e da morte, e, no caso de Jake, eles se materializam em um mundo repleto de figuras bizarras e fantásticas, habitado por seres que desafiam as leis da realidade. É um território familiar para Tim Burton, que constrói uma atmosfera onde as emoções profundas são simbolizadas por esses elementos surreais. Ao longo de sua jornada, Jake passa por desafios que mais parecem testes impostos pelo destino. Cada obstáculo enfrentado o aproxima de um entendimento maior sobre si mesmo e sobre o legado que seu avô lhe deixou. O jovem Butterfield traz à vida um Jake introspectivo, que alterna entre a saudade amarga e a euforia ao descobrir os segredos ocultos do mundo peculiar.

No entanto, não se trata apenas de uma fantasia escapista. Ao evocar temas como o luto, o legado familiar e a busca por identidade, Burton constrói uma narrativa que, embora imersa em um universo mágico, reflete questões humanas universais. A adolescência de Jake não é uma fase marcada por frivolidades, mas por responsabilidades que ele assume de maneira quase silenciosa. Em sua relação com o avô, há um afeto profundo, demonstrado em pequenos gestos, como quando o velho Abe o chama de “Tygrysku”, uma lembrança afetuosa da cultura polonesa que compartilham. São esses detalhes que humanizam a fantasia, tornando o filme mais do que uma aventura sobrenatural.

Enquanto Jake se aventura por portais mágicos e enfrenta criaturas de outro mundo, sua verdadeira batalha é interna: a aceitação da perda e a reconciliação com o passado. O título do filme ganha sentido no desfecho, quando entendemos que o “lar” em questão é tanto literal quanto metafórico. É um espaço onde as feridas emocionais podem ser curadas, onde o invisível se torna visível, e onde o estranho se revela belo. A narrativa não nos oferece respostas fáceis, mas, em vez disso, nos convida a refletir sobre como enfrentamos nossas próprias peculiaridades.

Assim, “O Lar das Crianças Peculiares” se apresenta como uma obra onde a fantasia se entrelaça com a realidade, explorando o impacto duradouro das memórias e a maneira como essas lembranças moldam quem somos. É uma celebração da imaginação, mas também um tributo à capacidade humana de se reinventar diante da adversidade. Tim Burton conduz o espectador por essa jornada com sua marca única, transformando o sombrio em encantador e fazendo do extraordinário uma extensão do cotidiano de seus personagens.


Filme: O Lar das Crianças Peculiares
Direção: Tim Burton
Ano: 2016
Gêneros: Fantasia/Aventura
Nota: 8/10