A vida se apresenta a cada um de nós de acordo com nossas capacidades de enfrentamento, ignorando certezas, desprezando os planos mais banais, e atropelando tudo o que julgamos precioso, impondo sua natureza implacável. Quase sempre, a vida nos confunde, mas também revela suas intenções obscuras, como se nos desafiasse a entender por que nos lança em abismos profundos, povoados pelos monstros que criamos.
À medida que convivemos mais intimamente com a vida, percebemos que seu maior prazer está em nos submeter aos seus caprichos, cujas razões ninguém pode alegar conhecer. A vida passa, felizmente — é isso que nos permite exercer algum controle sobre seus ardis imprevisíveis, mas pensar assim é sempre arriscado —, deixando atrás de si um rastro de destruição, alimentado por um mar de lágrimas. Algumas lágrimas são excessivas, mas a maioria surge de uma dor que só nós sentimos (e que dói muito!). No fim, tudo o que resta é juntar os cacos da dignidade estilhaçada e ter a coragem de recomeçar. De uma nova maneira.
Enfrentamos essa força implacável de cara limpa ou, às vezes, com métodos quase desonestos. Estamos todos sós, mas não o tempo todo. E, nesses intervalos, surgem as oportunidades perfeitas para provar que a vida é, de fato, carente de sentido. Quanto mais tentamos compreendê-la, mais nos aproximamos da loucura e do absurdo.
As personagens centrais de “Tudo o que Tínhamos” caminham constantemente na beira da insanidade, não muito certas de quão distantes estão da realidade, anestesiadas pelas formas mais cruas de sofrimento. Katie Holmes divide-se entre encarnar uma dessas figuras e assumir a direção do filme, demonstrando sensibilidade e competência em ambas as funções, evitando os caminhos óbvios da mesmice.
Interpretando Rita Carmichael, Holmes tem a oportunidade de explorar quase todos os aspectos da dramaturgia em menos de duas horas. O roteiro de Annie Weatherwax, baseado em sua novela homônima, junto com Jill Killington e Josh Boone, oferece um presente raro aos atores, mesmo que essa palavra já tenha perdido muito de seu significado devido ao uso excessivo. No entanto, Holmes faz jus às muitas facetas de Rita, transitando entre drama e comédia, misturando-os sem medo, aproximando-se do melodrama e até da tragédia, alcançando resultados de uma verossimilhança admirável.
A mensagem de Weatherwax é clara, e a interpretação de Holmes beira a genialidade ao evitar diálogos vazios que poderiam diminuir a angústia de Rita. Há dignidade na história dessa mulher que um dia teve uma casa, uma família, um casamento, e agora só pode contar consigo mesma, tirando forças de suas múltiplas vulnerabilidades para criar sua filha, Ruthie, interpretada por Stefania Owen. Ruthie, ao longo da trama, demonstra ser mais resiliente e, como se poderia prever, mais sensata que a mãe.
Essa transição de menina para mulher em Ruthie é evidente, por exemplo, na maneira como ela se aproxima de Pam, a garçonete transexual interpretada por Eve Lindley. Enquanto Rita não perde a chance de fazer comentários grosseiros sobre Pam, Ruthie a acolhe e é acolhida por ela.
Infelizmente, a amizade entre as duas se perde em meio às inúmeras subtramas, como os romances de Rita com dois homens de origens completamente opostas, que acabam não desempenhando um papel relevante no desenrolar da história.
“Tudo o que Tínhamos”, na Netflix, é uma narrativa modesta sobre uma mãe e sua filha lutando juntas pela felicidade — e, antes disso, pela sobrevivência. O filme é uma coleção de boas situações dramáticas, todas resolvidas com objetividade e a poesia possível, graças à direção de Katie Holmes, que claramente encontrou seu caminho atrás das câmeras. Que ela continue exatamente assim.
Filme: Tudo o que Tínhamos
Direção: Katie Holmes
Ano: 2016
Gêneros: Drama
Nota: 8/10