Os eventos trágicos têm um impacto tão profundo na existência humana que, se algum dia todos experimentássemos a felicidade absoluta, constantemente e ao longo de toda a vida, provavelmente teríamos evoluído para outra espécie. Essa transformação possivelmente nos afastaria significativamente daquilo que atualmente nos define como homo sapiens sapiens, os seres humanos conscientes de sua própria consciência. A humanidade pode ser dividida entre os céticos, que ainda acreditam em milagres, mesmo que nunca se concretizem, e os cínicos, que atribuem uma aura sobrenatural a tudo que ocorre no mundo.
“Amor Esquecido”, uma nova interpretação de Michał Gazda de um famoso filme polonês, explora essas e outras contradições fundamentais do espírito humano através da história de Rafał Wilczur, um cirurgião renomado que parece arrependido dos erros que o fizeram retroceder significativamente na vida. Similar a “The Quack” (1982), dirigido por Jerzy Hoffman, Gazda também foca intensamente no personagem central, com Leszek Lichota transformando-se drasticamente ao assumir o lado sombrio de Wilczur. Essa abordagem arriscada sempre flerta com o melodrama, que pode facilmente se tornar excessivo.
O gosto recente do público polonês por histórias exageradas é um fenômeno interessante. Antes do filme de Hoffman, o diretor ucraniano Michał Waszyński (1904-1965) havia adaptado a mesma obra de Tadeusz Dołęga-Mostowicz (1898-1939) com um toque de sobriedade. Em “Professor Wilczur” (1938), Waszyński, conhecido como “Príncipe”, optou por um estilo noir, influenciado pelo clima da época, já abalado pela iminente Segunda Guerra Mundial, que teve um impacto devastador no Leste Europeu.
O roteiro de Marcin Baczyński e Mariusz Kuczewski foca nas desventuras de Wilczur, mas também revela detalhes sobre outros personagens ao longo de 140 minutos. Desde o início, Lichota interpreta seu anti-herói de maneira que sugere o que pode acontecer, embora os motivos da transformação do professor não sejam completamente claros.
A briga na taverna explica o trauma físico, mas parece que Wilczur encontra uma desculpa ideal para escapar do mundo e de si mesmo. A transformação nunca é completa; apesar da aparência desleixada, Wilczur mantém seus modos aristocráticos, o que dá à narrativa um ar previsível, como se não houvesse muitas surpresas. A dinâmica muda com a entrada de Maria Kowalska, cuja atuação perspicaz confunde o público sobre o novo relacionamento que surge entre os personagens.
Esta versão do romance de Dołęga-Mostowicz se distancia do cultuado filme de Hoffman, que ainda é exibido regularmente na televisão polonesa em datas especiais, como o Dia de Todos os Santos ou a Páscoa — semelhante ao que acontece com “O Egípcio” (1954) de Michael Curtiz (1886-1962) em outras partes do mundo. Gazda faz uma tentativa louvável, mas “Amor Esquecido” talvez não tenha elementos suficientes para garantir um lugar permanente na memória dos espectadores.
Filme: Amor Esquecido
Direção: Michał Gazda
Ano: 2023
Gêneros: Drama/Romance
Nota: 7/10