O gênero da ficção científica tem sido um recurso valioso para o cinema explorar suas várias reflexões filosóficas sobre o destino incerto da humanidade, e “Jogos Vorazes”, na Netflix, é um exemplo claro disso. Apesar de ser um gênero que pode parecer controverso, as distopias oferecem um alívio notável para aqueles que se sentem inconformados com o caos constante do mundo. Se ainda não atingimos o fundo do poço moral e econômico que parece nos esperar, como uma serpente que hipnotiza sua presa antes de devorá-la, é apenas porque alguma força maior tem piedade de nós.
Essa força nos permite continuar em nossa agonia individual até que a morte nos alcance, a única solução para muitos que há muito foram tomados pelo desespero. Eventualmente, tudo o que conhecemos cessa, e começamos a nutrir novos desejos, perpetuando o ciclo das misérias humanas. Com um orçamento grandioso, um elenco afinado e uma história que se sustenta apesar de algumas incoerências, Gary Ross transforma esta trama no início de uma saga que se desdobra em mais três filmes, muito do sucesso devido a uma estrela dedicada que já mostrava sinais de que iria longe.
A luta pela sobrevivência nos força a adotar uma postura mais agressiva em relação aos outros, um comportamento que rapidamente se incorpora à nossa natureza, com a ajuda das inúmeras dificuldades que surgem nos cenários extremos em que a vida se transforma em uma arena onde se mata ou se morre. Indivíduos são privados de sua liberdade de escolha e sensibilidade, tornando-se extensões da consciência coletiva, sem mais pensar por si mesmos e obrigados a se submeter a expedientes vis, não por covardia, mas por não terem ninguém em quem confiar.
O roteiro de Ross, Billy Ray e Suzanne Collins, autora dos livros adaptados, fala de povos da América do Norte aniquilados após uma catástrofe — seja um conflito nuclear, uma guerra civil descontrolada ou simplesmente a consequência da incompetência governamental — que se reorganizam em um bloco coeso, Panem, administrado por um tal Capitólio (qualquer semelhança com a realidade não é coincidência) e dividido em doze distritos.
O diretor adiciona elementos que conduzem a inferências políticas cujo significado varia ao longo das quase duas horas e meia de projeção, um tempo excessivo apesar da coesão da trama. O espectador descobre, então, em que consistem os jogos: cada distrito deve indicar dois de seus residentes — os tributos —, uma garota e um rapaz, que lutarão até a morte em um espetáculo similar ao dos gladiadores da Roma Antiga.
Ross mantém a aura de fábula apocalíptica presente na obra de Collins, centrando-se em como os dois tributos do Distrito 12, o mais pobre, se comportam durante a preparação para o confronto, que terá um único vencedor. Antes que o filme avance para a fase mais sangrenta do torneio, Ross foca no romance improvável entre Katniss Everdeen, interpretada por Jennifer Lawrence em sua brilhante performance, e seu adversário Peeta Mellark, vivido por Josh Hutcherson.
Enquanto não percebem que foram feitos um para o outro — o que invalidaria o espetáculo macabro que são forçados a protagonizar — eles se submetem a uma série de testes não óbvios e igualmente cruéis, começando pelas aparições no talk show comandado por Caesar Flickerman, papel de Stanley Tucci que, mais uma vez, rouba a cena ao sugerir um desfecho um tanto enigmático, que a sequência eventualmente revela.
Filme: Jogos Vorazes
Direção: Gary Ross
Ano: 2012
Gêneros: Thriller/Ficção científica/Aventura
Nota: 9/10