Ao longo da história, a humanidade tem buscado maneiras de se inserir no mundo, estabelecendo códigos de conduta à medida que novos territórios são conquistados. Os contos de fadas funcionam como advertências sobre as possíveis consequências da violação dessas normas. “A Bruxa” (2015), dirigido por Robert Eggers, explora o desejo perene de emancipação feminina, utilizando esse tema para ilustrar a desintegração de uma família americana no século 17.
Eggers incorpora sermões ao longo do filme, que, à semelhança dos contos de fadas pagãos, enfatizam a necessidade de conformidade para evitar as chamas do inferno. Esses discursos, baseados nas alegorias do Livro de Jó, visam persuadir a humanidade a seguir os mandamentos divinos. Contudo, “A Bruxa” não busca ensinar lições de moral. Em vez disso, Eggers convida o público a se ver nas personagens: ímpias, pecadoras e humanas.
O filme mistura discurso religioso, política e filosofia, criando uma narrativa complexa e multifacetada. Kate Dickie interpreta Katherine, uma mãe em luto, que compreende seu papel na pequena sociedade que forma com seu marido, William (Ralph Ineson), e seus filhos. A família, composta pelos gêmeos Jonas e Mercy (Lucas Dawson e Ellie Grainger), Caleb (Harvey Scrimshaw), o bebê Samuel e Thomasin (Anya Taylor-Joy), é expulsa de sua comunidade devido à sua incapacidade de se adequar aos rígidos preceitos religiosos. Isolados na borda de uma floresta, eles são deixados à própria sorte, e o caos logo se instala.
Thomasin, interpretada por Taylor-Joy, se destaca no filme. Sua aparência angelical contrasta com a crescente tensão sexual e moral em sua família. À medida que ela amadurece, seus pais enfrentam o dilema de precisar de sua ajuda, mas também de querer arranjar-lhe um marido. O isolamento da família impede esse destino tradicional, exacerbando os conflitos internos. Eggers aborda temas difíceis como violência doméstica e abuso sexual, representados pela mãe que culpa a filha pelo desinteresse do marido.
O aspecto fantástico da trama se intensifica com o desaparecimento de Samuel, que sugere uma intervenção sobrenatural. A floresta, habitada por uma bruxa há milênios, é vista como um território maligno. O bode preto, Black Philip, é uma figura central que se transforma no próprio demônio, Belzebu. A presença do bode, símbolo demoníaco, sugere uma possessão que drena as forças da família.
“A Bruxa”, na Netflix, transcende uma simples narrativa sobre as aspirações de uma jovem perdida no obscurantismo do século 17. O diálogo entre Black Philip e Thomasin revela a alienação humana e a perda do que é mais precioso. O filme é uma dissecação da autodestruição familiar e da opressão feminina, destacando a vida dura e patriarcal das mulheres, sufocadas em qualquer estrutura social.
O final revela um contraste entre o desejo de liberdade e a realidade opressiva, evocando compaixão pela protagonista e deixando uma reflexão sobre a condição feminina.
Eggers pinta um quadro trágico e belo, reminiscentemente artístico, da vida das mulheres. O filme é um lembrete doloroso de que, apesar dos avanços, a luta pela emancipação feminina ainda está longe de ser vencida.
Filme: A Bruxa
Direção: Robert Eggers
Ano: 2015
Gênero: Terror/Fantasia
Nota: 9/10