Pablo Larraín é um cineasta comprometido. Sempre explorando as feridas antigas da história chilena, Larraín revela um Chile ainda desconhecido, sem receio das críticas de qualquer natureza. Há uma característica notável no povo chileno: ao contrário de muitos de seus vizinhos sul-americanos, o chileno não hesita em reconhecer seus erros e, com igual fervor, orgulha-se de suas conquistas e figuras ilustres, entre as quais Pablo Neruda (1904-1973) se destaca como o mais celebrado internacionalmente. “Neruda”, dirigido por Larraín em 2016 com roteiro de Guillermo Calderón, retrata os acontecimentos no Chile logo após a Segunda Guerra Mundial, centrando-se no personagem-título e nas múltiplas contradições que cercam sua figura exuberante.
Pablo Neruda, nome artístico — ou nome de guerra, como preferia — de Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto, lançou seu primeiro livro aos dezenove anos. Em 1923, publicou “Crepusculario”, uma coleção de poemas com suas primeiras impressões sobre o amor e suas complexidades. No ano seguinte, “Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada”, demonstrando uma maturidade maior, traça paralelos entre o corpo feminino e a natureza, duas de suas paixões constantes em sua vasta obra literária. Assim como entre o belo sexo e as montanhas de Machu Picchu, tema de uma de suas primeiras odes, Neruda também se dividia entre a arte e a política. Seu papel como diplomata foi crucial para alcançar seu sonho de ser eleito senador em 1945, pelo Partido Comunista do Chile. É justamente aí que “Neruda” foca sua narrativa.
A cena de abertura do filme mostra o poeta em exercício na Câmara Alta do Chile, em 1948, dirigindo-se a uma reunião no luxuoso banheiro do Senado, uma prática adotada para otimizar o tempo em dias de debates importantes e, obviamente, para manter a imprensa à distância. Naquela ocasião, discutia-se a responsabilidade dos congressistas pela eleição de Gabriel González Videla (1898-1980), cujo governo, embora democraticamente eleito, se tornava cada vez mais autoritário.
Larraín expõe o estilo de vida extravagante e desregrado de Neruda, contrastando com a representação em “O Carteiro e o Poeta” (1994), de Michael Radford. O poeta-senador é retratado como realmente era: um dândi, proprietário de uma mansão opulenta, onde promovia festas que frequentemente se transformavam em orgias. Aproveitando todas as vantagens de suas duas vidas, Neruda representa a “esquerda limusine” ou “esquerda caviar”, como é conhecida hoje. Em determinado momento do filme, um narrador oculto descreve Neruda e seus aliados como esquerdistas que nunca dormiram no chão. Mais adiante, em uma reunião informal onde política e arte se misturam, uma militante histórica, pobre e arrependida, questiona se o comunismo os igualaria a ela ou a ele. É um momento revelador.
A interpretação de Luis Gnecco como Neruda, quase mediúnica, captura as muitas contradições de sua vida como homem de letras que exaltava valores universais. A partir desse ponto, “Neruda” entra num segundo ato sombrio, onde o poeta passa a ser caçado após a proibição do Partido Comunista. Óscar Peluchonneau, o detetive fictício interpretado por Gael García Bernal, encarna o desprezo pelas instituições e liberdades individuais, encarregado de prender Neruda com fervor. Neruda foge do Chile, atravessando a fronteira argentina de carro e cavalgando pelos pampas nevados até um esconderijo arranjado por seus colegas. Em 1952, ele segue para a ilha de Capri, na Itália.
Sua segunda esposa, Delia del Carril (1884-1989), papel de Mercedes Morán, ficou no Chile, mas manteve correspondência constante com ele. Em 1973, já de volta ao Chile e casado oficialmente com Matilde Urrutia (1912-1985), sua amante de longa data, Neruda sucumbe a um câncer de próstata em 23 de setembro, um episódio ainda envolto em mistério. Seu sonho de liberdade comunista e sua vida se encerram tragicamente: o socialista marxista Salvador Allende (1908-1973) chega ao poder pelo voto, mas é encontrado morto no Palácio de La Moneda, tendo cometido suicídio sob pressão de Augusto Pinochet (1915-2006), que lidera a ditadura de 17 anos, resultando em mais de três mil mortos, oitenta mil presos políticos e trinta mil torturados. Esses dados ficaram fora do filme de Larraín.
Filme: Neruda
Direção: Pablo Larraín
Ano: 2016
Gêneros: Drama/Policial/Biografia
Nota: 9/10