Para realmente compreender um casamento, é necessário vivê-lo por dentro. Mesmo assim, muitas vezes parece que os parceiros estão falando línguas diferentes. Esse é exatamente o caso no casamento da autora alemã Sandra Voyter (Sandra Hüller) e seu marido francês, o aspirante a escritor Samuel (Samuel Theis), explorado minuciosamente no drama de tribunal “Anatomia de uma Queda”, dirigido por Justine Triet. A comunicação é um dos pontos de tensão, com Sandra preferindo falar em inglês, embora residam na França a pedido de Samuel.
Essas tensões, no entanto, poderiam ter permanecido confinadas dentro do chalé alpino do casal, se não fosse pelo trágico incidente que mudou tudo: Samuel é encontrado morto pelo filho de 11 anos do casal, Daniel (Milo Machado Graner), que é deficiente visual, após uma queda da janela do sótão. A investigação sobre a morte é inconclusiva, não descartando a possibilidade de homicídio. Assim, Sandra é levada a julgamento, com seu filho como uma das testemunhas-chave. O relacionamento deles é dissecado por um perspicaz advogado de acusação (Antoine Reinartz), que tenta usar as falhas no casamento como prova de culpa.
O filme, com roteiro coescrito por Triet e seu marido, Arthur Harari, destaca-se pela complexidade e profundidade do texto. Referenciando dramas de tribunal clássicos como “Kramer vs. Kramer” e “Anatomia de um Crime”, de Otto Preminger, ele desconstrói as expectativas do público, explorando preconceitos e suposições. Enquanto dramas de tribunal podem ser repletos de diálogos enfadonhos, este filme mantém uma energia inquieta e cativante.
O casamento, conforme retratado no filme, é um conjunto de momentos variados. A narrativa do tribunal depende de destacar os aspectos mais sombrios e infelizes do relacionamento de Sandra e Samuel, sugerindo uma capacidade de Sandra para cometer assassinato. Porém, como Sandra aponta, um enfoque em momentos mais felizes pintaria um quadro completamente diferente.
Apesar disso, há muito material para a acusação. Similar ao que ocorre em “Saint Omer”, de Alice Diop, não é apenas uma mulher que está sendo julgada, mas também as percepções sobre gênero e papéis sociais. Triet aborda questões sobre divisão de trabalho, o papel da esposa e a resistência da sociedade a uma mulher que busca o que deseja sem pedir desculpas. Sandra prioriza sua carreira e admite ter relações bissexuais, mas isso não a torna culpada de assassinato. Contudo, ela não se enquadra no papel de vítima esperada.
Triet reforça essa percepção ao filmar Sandra frequentemente de um ângulo baixo, sugerindo uma presença dominante e ameaçadora. No tribunal, Sandra é defendida por Vincent Renzi (Swann Arlaud), e o julgamento reflete não apenas sobre o suposto crime, mas também sobre como as mulheres são criticadas na sociedade.
A luta de Daniel também é central na narrativa, enquanto ele tenta entender o passado de sua família e seu próprio futuro. Assistido por seu cão de serviço, Snoop, Daniel enfrenta a complexidade da situação. “Anatomia de uma Queda” foi aclamado no Festival de Cannes, recebendo a Palma de Ouro pela construção meticulosa e execução precisa. Triet criou um filme que brilha pela sua precisão e complexidade, assim como a protagonista que retrata.
Um dos grandes prazeres do filme é a incerteza que ele mantém até o final. A diretora Triet se recusou a responder à pergunta de Hüller sobre a culpa de Sandra, alegando que ela mesma não sabia a resposta. Essa ambiguidade deixa o público refletindo sobre as peças que faltam no quebra-cabeça, mantendo a tensão e o interesse vivos até o último momento.
Filme: Anatomia de uma Queda
Direção: Justine Triet
Ano: 2023
Gêneros: Crime/Thriller
Nota: 10