É comum que casais enfrentem momentos de tensão e decidam por um retiro improvisado na tentativa de salvar a relação. Tal escapada, repleta de expectativas e sentimentos não resolvidos, frequentemente revela problemas mais profundos, muitas vezes negligenciados e potencialmente devastadores. É essencial que ambos os lados se envolvam em uma exploração sincera e profunda das questões subjacentes, caso contrário, qualquer esforço corre o risco de ser em vão, exacerbando ainda mais os conflitos. Relações deterioradas por ressentimentos não resolvidos podem facilmente escapar ao controle, tornando-se irrecuperáveis.
Mike Flanagan, em sua adaptação de “Jogo Perigoso”, de Stephen King, emprega sua característica meticulosidade para transformar uma narrativa aparentemente simples em uma análise profunda de questões complexas e muitas vezes ignoradas. Embora o romance de King não seja um de seus mais celebrados, é reconhecido por sua complexidade narrativa. Publicado no Brasil em 1992 pela editora Suma, o livro explora o fluxo de consciência da protagonista, Jessie, sem esclarecer se suas percepções são delírios ou realidades distorcidas por um evento traumático. A trama, confinada majoritariamente a um único cenário, poderia facilmente desinteressar o público, mas Flanagan, determinado, enfrenta e supera esses desafios.
O filme inicia apresentando o dia a dia do casal central, preparando-se para uma viagem que esperam reacenderá a chama do relacionamento. Gerald, interpretado por Bruce Greenwood, é um advogado bem-sucedido cujo jogo de poder e controle é refletido no título original do livro de King, “Jogo Perigoso”. No entanto, o foco narrativo recai sobre Jessie, vivida por Carla Gugino. Ao organizar suas malas, Jessie inclui um item essencial para os planos de Gerald, sinalizando as tensões subjacentes que virão à tona.
Durante a viagem, pequenos gestos e silêncios revelam o distanciamento emocional entre os dois. Uma parada abrupta no bosque onde encontram um pastor alemão perdido serve como uma metáfora para o estado do relacionamento. O cão, posteriormente atraído por um bife preparado por Jessie mas financiado por Gerald, simboliza o desequilíbrio de poder e o desconforto mútuo que permeiam o casamento.
Ao chegarem ao seu destino, Gerald inicia seu plano de reconquista, envolvendo o uso de algemas para realizar uma fantasia sexual. No entanto, o plano sai tragicamente errado. Jessie, imobilizada e vulnerável, reage com desconforto extremo, levando a um confronto que culmina na morte súbita de Gerald. Sozinha e acorrentada à cama, Jessie é assombrada por um cão selvagem e suas próprias memórias traumáticas. A narrativa se desdobra então em uma série de flashbacks que elucidam seu profundo desconforto com a situação atual, revelando traumas passados que moldaram seu presente.
Flanagan utiliza essas memórias para criar um ambiente de claustrofobia e tensão, com a cinematografia de Michael Fimognari intensificando a sensação de agonia de Jessie através de filtros vermelhos opressivos. A luta de Jessie para escapar de sua prisão física e mental culmina em um clímax que mistura realismo com surrealismo, onde o espectador é levado a questionar a natureza da realidade que Jessie enfrenta.
O filme conclui com uma cena de tribunal, talvez dispensável, que esclarece os motivos das memórias traumáticas de Jessie. Essa sequência final oferece uma resolução que tenta dar sentido à jornada dolorosa da protagonista, mas pode parecer uma adição desnecessária à narrativa intensa que a precedeu.
Em “Jogo Perigoso”, na Netflix, Flanagan não apenas adapta uma obra complexa de Stephen King, mas também utiliza a história como um veículo para explorar temas de poder, controle e sobrevivência psicológica. Através de uma direção precisa e performances intensas, o filme desafia o público a olhar além da superfície e a confrontar as realidades ocultas dos personagens, tornando-se uma obra significativa na filmografia do diretor.
Filme: Jogo Perigoso
Direção: Mike Flanagan
Ano: 2017
Gêneros: Terror/Thriller
Nota: 8/10