Um advogado prepotente escapa de uma tentativa de assassinato num estacionamento em Tóquio. O crime tem todas as características da obsessão mais insondável de um maníaco, que se vale de um machado para golpear na cabeça suas vítimas e delas extrair o cérebro, como se quisesse lhes roubar a sabedoria, as emoções, dissecar-lhes os medos, capturar tudo quanto produziram durante uma vida inteira de sacrifício, glórias, conquistas e perdas. “Lumberjack the Monster”, conto entre o farsesco e o cru sobre perversões que se eternizam no gênero humano a despeito de todo cuidado que se tome, desfila por zonas cinzentas da alma, dando a entender que, em dadas circunstâncias, sufocar o mal que se recebe pode ser a única saída para não emporcalhar-se também.
O diretor Takashi Miike parece querer demonstrar isso valendo-se de Akira Ninomiya, o anti-herói que encontra no romance homônimo do japonês Mayusuke Kurai, publicado em 2019, ao qual confere uma aura de mistério e alguma sedução, até que se torna-se ele mesmo um criminoso abjeto. O roteiro de Kurai e Hiroyoshi Koiwai frisa essa ambivalência moral de Ninomiya com naturalidade, ao passo que rastreia o entorno do protagonista de modo a despertar o público para os aspectos quase clandestinos que vão tirando os véus de sobre esse homem ardiloso como o diabo.
Poder é uma das drogas mais potentes já criadas pelo gênero humano. Universo particular de suas próprias ideias, vontades mais e mais imperiosas, necessidades as mais íntimas, tantas loucas possibilidades acerca do existir, o homem, quando investido de poder, se transforma ou, melhor, se revela, permitindo que aflore uma natureza que ele mesmo nunca conheceu. Sem margem para contestação, todos esses sempre foram elementos da sua própria constituição mais secreta, ainda que ele próprio nunca o confesse.
Virtudes e defeitos — principalmente defeitos — estabelecem o quão resoluto pode ser um indivíduo cujo maior objetivo na vida é escalar sem descanso a muralha dos sonhos mais impublicáveis, todos ligados entre si e afinados, intentando atingir uma meta bastante específica. Essa ânsia por sair de um lugar que parece menor aos olhos do mundo e alcançar o topo, custe o que custar, passa pela cabeça de todos nós; entretanto, só aqueles verdadeiramente obcecados, seduzidos de morte pela graça maldita do poder, são capazes de fazer desse projeto tão etéreo uma realidade, perigosamente confortável.
No prólogo, uma menina lê a história de um certo lenhador e pouco depois jatos de sangue começam a tingir as paredes. Essa é a maneira com que Miike deixa clara sua descrença na humanidade, partindo do flashback em que um casal revira os miolos das crianças que mantêm encarceradas. Ninomiya surge relembrando seu trauma a Sugitani, o amigo cirurgião vivido por Shota Sometani, que acrescenta uma nova informação que ajuda a dissipar a névoa de estranheza da pena de Kurai, conservada pelo diretor. Um chip neural pode ser a razão do comportamento selvagem do advogado, e daí até a conclusão Kazuya Kamenashi é uma figura imprescindível no desenrolar dos fatos, sem que ninguém fique enfarado com sua onipresença — não obstante a solução deus ex machina escolhida por Miike não seja das mais empolgantes.
Filme: Lumberjack the Monster
Direção: Takashi Miike
Ano: 2023
Gêneros: Suspense/Terror/Drama
Nota: 8/10