Comédia francesa na Netflix vai te fazer pensar enquanto ri de nervoso Divulgação / Medset Film

Comédia francesa na Netflix vai te fazer pensar enquanto ri de nervoso

Brincadeiras de adultos acarretam efeitos que, presume-se, demandam maturidade de gente grande. Pelo menos seria esse o fim menos leviano para o joguinho estúpido em que fundamenta-se “Nada a Esconder”, a comédia dramática em que o francês Fred Cavayé vale-se de elementos assumidamente teatrais para narrar os desdobramentos de uma quase desastrosa noite entre amigos.

A certa altura, o roteiro, de Cavayé, Filippo Bologna e Paolo Costella, investe no realismo mágico para explicar o que teria levado ao mal-entendido da psicanalista Marie e o cirurgião plástico Vincent, os anfitriões vividos por Bérénice Bejo e Stéphane de Groodt, e seus cinco convivas, dois casais e um homem desacompanhado, erro a que o espectador também é conduzido. O truque é o mesmo de que se utiliza o espanhol Álex de la Iglesia em “Perfeitos Desconhecidos” (2017), fazendo-se um pequeno ajuste quanto ao fenômeno natural que contempla o grupo e, claro, mudando-se o nome dos personagens. Porém com resultados bem mais modestos.

Em se lidando com os sentimentos mais impublicáveis de uma pessoa, tirar do limbo fatos e declarações que não dizem respeito a mais ninguém senão aos indivíduos, adultos e capazes, envolvidos nesses episódios só o que faz é trazer cizânia e quiçá tragédia. É absolutamente natural e mesmo defensável sob a perspectiva humanitária querer tomar algum partido na vida alheia, porém é da mesma forma prudente manter sob controle os ímpetos quanto a reger o que não lhe cabe. Até porque todos, do varredor de rua ao rei, alcançando ainda as classes mais plurais de grã-finos de toda ordem, temos detalhes dos quais não nos orgulhamos em nossa biografia privada.

Numa noite de eclipse, Marie e Vincent recebem Charlotte e Marco, os tipos encarnados por Suzanne Clément e Roschdy Zem; Léa e Thomas, os recém-casados de Doria Tillier e Vincent Elbaz; e Ben, de Grégory Gadebois, que deveria ter ido uma Julie, uma suposta namorada. Charlotte e Marco deixaram os filhos com a mãe dele, Léa e Thomas ainda não têm preocupações dessa natureza, e Ben parece só querer voltar para casa o quanto antes. Vincent insiste em servir foie gras ao leite (!), o vinho biodinâmico do casal mais novo, a 25 euros a garrafa, não é aquela sensação que pensavam, e Ben nunca fazer estrear o bastão de selfie que talvez tenha comprado especialmente para o jantar, inspirado pela lua que se encobre aos poucos. O que mais pode dar errado?

Muita coisa. Dessa ordem cênica clássica, em que os atores permanecem muito próximos ao longo de boa parte do filme, De la Iglesia extrai boas sequências, alternando os enquadramentos de um tipo para o seguinte, ao passo que consegue captar também as reações de todo o elenco. Desenrolam-se fragmentos perturbadores, cuja importância só vai ter a justa medida com o desfecho, que apela a uma solução tipicamente deus ex machina.

Movimentos quase imperceptíveis de alguns dos comensais desse jantar diabólico determinam como se vai deslindar a narrativa central, o que, claro, só se comprova mesmo na reta final da história. É a psicoterapeuta quem propõe o jogo a que o título original alude, a participação de todos nas comunicações que venham a receber por telefone enquanto estiverem reunidos, mas ela mesma não confia no próprio taco; Bejo compõe com De Groodt a personificação máxima do casal classe média alta dito descolado, mas que se dói quando sua pretensa harmonia familiar e a felicidade conjugal de fancaria começam a fazer água.

Vincent, um dos médicos mais renomados na sua especialidade, não suporta que a mulher lhe tenha segredos — ainda que não se furte a nutrir romances de alcova com as dondocas em que implanta litros de silicone — e os episódios de infidelidade em nuanças de maior ou menor carga dramática e a homossexualidade de um dos convidados são expostos a sangue frio, mas com leveza. O verdadeiro problema em “Nada a Esconder” é justamente esse: tudo já fora dito por De la Iglesia. E a conclusão, com a licença do trocadilho, não desce.


Filme: Nada a Esconder
Direção: Fred Cavayé
Ano: 2018
Gêneros: Comédia/Drama
Nota: 7/10