O filme hipnotizante na Netflix é uma jornada espiritual sobre solidão e autoconhecimento Divulgação / Fox Searchlight Pictures

O filme hipnotizante na Netflix é uma jornada espiritual sobre solidão e autoconhecimento

Não dominamos nada nem ninguém, nem sequer nossa existência, embora, por mais paradoxal que pareça, existam pessoas que planejam sua vida material como se fosse um rigoroso cronograma industrial, sem espaço para desvios de qualquer tipo. Em certas ocasiões, é imprescindível distanciar-se bastante para finalmente sentir-se no próprio lar, e apenas após superar uma viagem longa e exaustiva, quase inumana, compreende-se o que realmente se buscava. 

Cheryl Strayed, a Cheryl desorientada, procurou encontrar-se de diversas maneiras, contudo, foi ao atravessar o oeste dos Estados Unidos que conseguiu organizar anos de traumas devido a perdas devastadoras, pensamentos e comportamentos autodestrutivos, e a inquietação comum frente a tudo o que é possível saber sobre a existência. 

No filme “Wild”, Jean-Marc Vallée (1963-2021) ilustra grande parte do percurso de Strayed ao longo dos aproximadamente 1.800 quilômetros da Pacific Crest Trail, uma rota que atravessa a Califórnia de sul a norte, de março a agosto, enfrentando inicialmente calor intenso e, posteriormente, neve, além dos desafios que exigem dos viajantes determinação e a habilidade de superar-se constantemente. Nick Hornby revitaliza a narrativa — conhecido por “Alta Fidelidade” (1995), romance adaptado para o cinema por Stephen Frears em 2000, no qual também atuou como roteirista —, transformando episódios dolorosos de “Livre — A Jornada de uma Mulher em Busca do Recomeço” (2012), de Strayed, sua parceira frequente, em uma série de versos provocantes e instigantes, uma característica marcante do filme. 

No início, Cheryl senta-se à beira de um precipício, remove seu pé de uma bota de cadarços vermelho-cereja e arranca a unha do dedão esquerdo. Curvando-se com a dor, a bota é lançada ribanceira abaixo, um ritual de sangue que ela enfatiza ao jogar o outro par do calçado. Tais cenas captam rapidamente a atenção do público, convencendo-o de que Reese Witherspoon é a atriz perfeita para esse papel. 

Após performances variadas após “Johnny & June” (2005), a biografia de Johnny Cash (1932-2003) e June Carter (1929-2003) dirigida por James Mangold, que rendeu a Witherspoon o Oscar de Melhor Atriz, ela se destaca em uma interpretação simultaneamente amarga e cativante, incluindo nos diversos flashbacks em que a protagonista revive momentos que a influenciaram a tomar a decisão mais drástica sobre seu futuro — ou a sua ausência. 

Nestes segmentos, Laura Dern, no papel de Bobbi, mãe de Cheryl, atrai a atenção quase tanto quanto em “História de um Casamento” (2018), de Noah Baumbach, que também lhe rendeu o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante. Vallée, com acerto, dedica preciosos minutos do filme para explorar a relação entre Cheryl e Bobbi, cujo entusiasmo pela vida não sobrevive a um câncer de medula. Obviamente, isso não esclarece completamente o estado de Cheryl, que aos 27 anos, divorciada, parece ter abandonado o interesse por encontros casuais com desconhecidos, justamente o comportamento que desgastou seu casamento com Paul, interpretado pelo excelente Thomas Sadoski. Ainda assim, enfrenta a dependência em heroína. 

A sequência de adversidades relacionadas ao clima, à alimentação limitada e pouco saborosa, à ausência de banhos e à quietude constante auxilia Cheryl a definir quem ela é, mesmo que nos registros dos visitantes, ela ocasionalmente deixe mensagens que mesclam sua identidade com a de Emily Dickinson (1830-1886), Robert Frost (1874-1963) ou John Micherer (1907-1997). Em 15 de setembro de 1995, ao concluir a jornada, ela simplesmente volta a ser Cheryl Strayed. E redescobre-se autônoma. 


Filme: Wild
Direção: Jean-Marc Vallée
Ano: 2014
Gêneros: Aventura/Thriller/Biografia 
Nota: 9/10