História real de coragem e justiça, na Netflix, que você não conhecia e que vale cada minuto da sua atenção Glen Wilson / Netflix

História real de coragem e justiça, na Netflix, que você não conhecia e que vale cada minuto da sua atenção

Em 1968, 435 pessoas representavam os 179.323.175 cidadãos americanos na Câmara, segundo o censo de 1960. Desses, onze eram mulheres; cinco, negros e com a eleição de Shirley Chisholm (1924-2005), uma professora do ensino básico do 12º Distrito de Nova York, as mulheres afro-americanas também passaram a existir para a política e, esticando-se um pouco a corda, para si mesmas.

Evidentemente, as ambições de Chisholm não ficaram por aí, e “Shirley para Presidente” é um recorte hagiográfico da campanha presidencial da democrata, quatro anos depois, aposta marcada por riscos, orgulho, luta, afirmação e sonho, muito sonho, que embora não tenha terminado com a primeira presidente mulher e negra — feito ainda inédito na história dos 248 anos de fundação dos Estados Unidos —, serviu para acender a luz vermelha sobre um imenso rol de questões que insistem em pairar sobre indivíduos não-WASP (brancos, anglo-saxões e protestantes, na sigla em inglês).

O diretor-roteirista John Ridley inclui no texto a longa cronologia da deputada entre o Capitólio e a vontade de tornar-se a 37ª inquilina da Casa Branca, vaga conquistada pelo republicano Richard Milhous Nixon (1913-1994), obrigado a renunciar dois anos depois, em 9 de agosto de 1974, por denúncias de corrupção e espionagem à sede do Partido Democrata em Washington, o caso Watergate. O nomeado pela legenda do burro acabou sendo o senador veterano George McGovern (1922-2012), mas a liderança de Chisholm se mostrou proveitosa para uma nação cheia de feridas a tratar.

“Shirley para Presidente”, na Netflix, sofre do mesmo mal que aflige biografias de outros vultos da História, a exemplo do que acontece com “Rustin” (2023), de George C. Wolfe, sobre Bayard Rustin (1912-1987), um ativista negro e homossexual nascido na Pensilvânia do começo do século 20, famoso por combater a violência e a extorsão de homens gays pela polícia da capital americana. O que acontece é que tanto Rustin como Chisholm acabam se tornando maiores que sua própria jornada, e nem sempre os diretores sabem a maneira certa de lidar com tal evidência.

No caso de Ridley, isso fica patente já na sequência inicial, quando a recém-eleita congressista posa para a foto oficial da nova composição do Legislativo nas escadarias do Capitólio. É impossível perder sua figura sobranceira de vista — também pelo ineditismo da cena, claro —, e o diretor deveria seguir essa linha, uma vez que todos sabemos qual será o destino de Chisholm. A postura altiva da personagem central, com Regina King sempre muito ereta, acompanhando seus interlocutores homens com o olhar retilíneo, como se lhes fosse também fisicamente próxima, é trunfo do longa, alcançado pela câmera milimetricamente posicionada e pela edição engenhosa de JoAnne Yarrow.

A propósito, um registro como esse tem muito mais peso em se frisando a presença dos muitos homens na vida de protagonista, e sob essa perspectiva Ridley comete um grande deslize. As estratégias traçadas com o marido, Conrad, de Michael Cherrie, responsável por sua segurança e fotógrafo informal; os conselheiros Wesley McDonald Holder, o último trabalho de Lance Reddick (1962-2023), e Arthur Hardwick Jr. (1916-1986), vivido por Terrence Howard; além de Robert Gottlieb, o articulador da campanha com os estudantes interpretado com denodo por Lucas Hedges, parecem envoltas num véu de segredo e moralismo, o que se justifica ao se verificar o quase silêncio acerca do divórcio de Chisholm e Conrad, e o casamento com Hardwick Jr., meses depois, como se ela não tivesse o direito de refazer a vida.

A negra e a mulher seguiram chocando suscetibilidades hipócritas e incomodando na política, até afastarem-se do Parlamento, sempre juntas, em 1983, ao cabo de sete mandatos consecutivos. Shirley Chisholm morreu em 1º de janeiro de 2005, aos oitenta anos, sem poder assistir à eleição de Barack Obama (2009-2017), o primeiro presidente negro da América. Nenhuma mulher, de qualquer cor ou etnia, o sucedeu até agora.


Filme: Shirley para Presidente
Direção: John Ridley
Ano: 2024
Gêneros: Drama/Mistério
Nota: 8/10