Premiado e aplaudido de pé no Festival de Cannes 2023, thriller que estreou na Netflix vale cada segundo do seu dia Divulgação / Paname Distribution

Premiado e aplaudido de pé no Festival de Cannes 2023, thriller que estreou na Netflix vale cada segundo do seu dia

Amat Escalante tem se tornado um porta-voz das carências e dos anseios do México de seu tempo. Dez anos depois da estreia de “Heli” (2013), a história do romance quase idílico de um recruta de dezessete anos por uma garota de treze, traspassado pelo tráfico de drogas, Escalante, espanhol de Barcelona radicado em Guanajuato, volta aos holofotes.

Um filho que procura a mãe por três anos até, finalmente, deparar-se com um indício precioso é o trampolim de que o diretor se lança para tecer considerações fulminantes sobre o alcance do narcotráfico em seu país, o trabalho análogo à escravidão, a fortuna de uns poucos construída sobre o sangue de outros tantos, o tal vício da América em petróleo apontado por ninguém menos que George W. Bush (2001-2009), e, por óbvio, o poder das milícias, infiltradas em tudo isso.

“Perdidos en la Noche” segue o rastro deixado por “Heli”, com que Escalante ganhou o prêmio de Melhor Diretor do Festival de Cannes, e não se furta a continuar denunciando a barbárie silenciosa nos rincões invisíveis da América do Norte, questão cada vez mais imanente à política institucional do México, que não lhe vislumbra nenhuma solução em curto prazo.

O cineasta junta-se a seu irmão Martín, com quem já havia trabalhado em “Os Bastardos” (2008), e a Paulina Mendoza num relato pungente da miséria galopante de determinados setores da população, explorados sem pejo por organizações influentes e muitas vezes criminosas. O longa abre com uma assembleia na qual moradores de uma cidadezinha nos arredores da fronteira com os Estados Unidos decidem se querem ou não a presença de uma mineradora — que, na verdade, já está instalada ali há algum tempo.

Paloma, uma professora conhecida no povoado por engajar-se em causas sociais, apresenta as razões que levam-na a abominar a atuação da empresa, mas ouve a manifesta discordância dos outros moradores, com direito a ofensas coléricas e ao arremesso de frutas apodrecidas. Embora curta, a passagem de Vicky Araico pela história define o tom de drama de família que deriva para o enredo de crítica generalizada apreciado na sequência.

O triênio que separa o desaparecimento de Paloma e a descoberta de um possível mandante do crime devem ser encarados pelo público com certa licença poética, uma vez que o design de produção de Daniela Schneider não é capaz de inspirar no espectador a sensação de alguma mudança mais palpável. Quando, depois de escalar boa parte de uma estrutura de metal sem nenhum equipamento de segurança, um colega despenca e vai parar no hospital, correndo o risco de ficar paraplégico, Emiliano, o filho caçula da personagem de Araico, conhece Josito, que militava com Paloma na resistência ao avanço da mineradora.

Ele convalesce de queimaduras de terceiro grau, que o texto dos irmãos Escalante e de Mendoza leva a crer terem sido o resultado de uma tentativa de homicídio. Josito não fala, mas numa caderneta, escreve onde Emiliano pode encontrar a resposta para a pergunta que tanto o intriga.

Num certo quilômetro 5, vivem os Aldama Duplas, uma família burguesa-liberal de artistas. O escultor Rigoberto Duplas; sua esposa, Carmen, uma atriz e cantora famosa; a enteada Mónica, a filha mais velha de Carmen; e a filha mais nova dos dois, compõem uma família tão emocionalmente instável quanto excêntrica.

Esse núcleo é usado por Escalante como pano de fundo para tudo quanto acontece de relevante ligado ao argumento central, e enquanto isso, Fernando Bonilla e Bárbara Mori monopolizam as atenções como um casal neurótico, apavorado com as ameaças dos Aluxes, uma comunidade messiânica fictícia que cultua Alux, divindade maia a que se creditam o caos, os danos e a destruição que regem o mundo.

Na apresentação desses personagens, a cena de dois pitbulls envenenados, uma suposta reação dos Aluxes a entrevistas em que Rigo insinua que seus vizinhos fanáticos estupram e sacrificam crianças, começa a esclarecer o que os Aldama poderiam ter em comum com a mineradora e o sumiço de Paloma. No meio de tudo isso, o diretor recheia o mistério com lances que contam pouco sob a perspectiva semântica, mas aumentam a sensação de estranhamento de quem assiste.

Os encontros de Emiliano e Mónica, sempre perturbadores, fazem das performances de Ester Expósito e Juan Daniel García Treviño um espetáculo à parte. Ainda mais seguro que no excelente “Ya No Estoy Aqui” (2019), a odisseia contemporânea de Fernando Frías de la Parra, Treviño dá o ritmo do filme ao longo de quase todas as duas horas, misturando o diabólico temperamento autodestrutivo que persegue Emiliano à fome por justiça que o mantém de pé na escuridão de dias de tormento que antecedem noites sem descanso.


Filme: Perdidos en la Noche
Direção: Amat Escalante
Ano: 2023
Gêneros: Thriller/Mistério
Nota: 9/10