Por que você deve ver ‘Anatomia de uma Queda’ — mesmo que não queira DIvulgação / Diamond Films

Por que você deve ver ‘Anatomia de uma Queda’ — mesmo que não queira

Nem todo filme que ganha a Palma de Ouro em Cannes precisa ser visto por você. Alguns fazem metáforas com macarrão, papagaios e o imponderável da vida, o que às vezes não desce bem. Outros filmes a crítica aplaude, mas não são “tudo isso”. E tem “Anatomia de uma Queda”, que ganhou o prêmio em 2023 e estreou agora nos cinemas do Brasil. Ele é tudo isso, sim. Está concorrendo a um punhado de prêmios no Oscar 2024, incluindo o de melhor filme. Não sei se Hollywood vai premiá-lo. Só sei que o filme deveria ganhar algo. E você deveria assisti-lo. É porque o filme valoriza uma arte que o cinema parece estar perdendo: o de seduzir a plateia com ambiguidades e incertezas.

Pode prestar atenção: muitos filmes hoje fazem questão de entregar tudo (conclusão, mensagem… tudo, enfim) de colherinha na sua boca. Tem diretor que faz questão de cutucar você a cada minuto: “Viu só? Entendeu? Entendeu?” Com “Anatomia de uma Queda” é diferente. A história, caso você não saiba, é simples: um casal mora com seu filho quase 100% cego em uma casa distante de uma pequena cidade francesa, no meio da neve. Um dia o filho sai para passear com o cachorro. Na volta, descobre que o pai está morto na frente da casa. Suicídio, acidente ou assassinato? A mãe, que estava dormindo em um quarto, vira suspeita.

O filme passa 2h30 sugando você para o microcosmo dessa família que parece igual a todas as outras, mas que se revela não muito igual a todas as outras — porque nenhuma é igual a todas as outras, caramba. Respirem fundo, apressadinhos, mas o filme precisa mesmo de mais de 2 horas para mostrar o que quer mostrar. São camadas de segredos, traumas e rancores que vão surgindo. E, ao contrário de filmes como “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo”, ele não usa truques narrativos, de edição, nem de câmera. Chega de multiverso e edição frenética com TDAH para manter você longe do celular. É câmera no lugar certo, mostrando o que você deve ver e te desviando do que não deve ver. Edição sutil como seda, mas precisa como agulha. E só. Você é que vai tirando as suas conclusões. Faz um esforço aí, poxa.

Todos os atores são bons, juro. Até o cachorro. Mas ninguém se esgoela para ganhar um prêmio. São só atores agindo como humanos de verdade. Eles sofrem, ficam confusos, empolgados, exaustos. As cenas de tribunal são tensas, mas não tem ninguém de olhos esbugalhados berrando para sacudir você. Temos apenas advogado e promotor duelando, usando fatos e perguntas pontiagudas. Como na vida real. Aliás, o filme quase nos faz acreditar que tudo aquilo é real — fiquei com vontade de pegar a atriz principal e colocar no colo, coitada. Há uma cena em que o áudio de uma briga do casal é revelado e todos escutam no tribunal. É como quase toda briga de casal: cruel, dolorida. Jesus, nós somos assim quando brigamos? Sim, todos nós somos. A cena bate no peito. Talvez você já tenha tido uma briga assim. Você quer tomar partido, supõe saber quem está certo, mas não está 100% convicto.

E é por isso que você deve ver o filme. Filmes assim, que usam mais dúvidas do que certezas, estão se tornando raros. É filme para gente grande, que sabe que a vida não é tudo preto ou branco. E que nenhum momento redentor vai vir embrulhado junto com batata frita e refrigerante, facinho de engolir. Cinema pode ser escapismo às vezes. Mas não o tempo todo em todo lugar.

Precisamos de mais filmes assim. E eu estou na torcida por ele no Oscar, mesmo sem muita esperança. Bom, mas é assim mesmo na vida real, não é?