Faça um favor a si mesmo: tire 115 minutos do seu tempo para assistir a este filme adorável que está na Netflix Divulgação / Fox Searchlight Pictures

Faça um favor a si mesmo: tire 115 minutos do seu tempo para assistir a este filme adorável que está na Netflix

Não somos senhores de ninguém nem de coisa alguma, nem de nossas próprias vidas, malgrado, por absurdo que soe, haja quem trate sua passagem pelo plano da matéria feito o cronograma de uma fábrica, sem margem alguma para deambulações de qualquer natureza. Às vezes é necessário ir para muito longe a fim de se sentir em casa, e só quando vencida uma jornada extensa, fatigante, desumana até, sabe-se, afinal, o que se procurava.

 Cheryl Strayed, a Cheryl desviada, tentou alcançar-se de muitos jeitos, mas foi atravessando o oeste dos Estados Unidos que teve a chance de colocar em ordem anos de traumas por perdas insuperáveis, pensamentos e condutas autodestrutivos, a tão natural inconformidade com tudo quanto se pode saber do existir.

Em “Wild”, Jean-Marc Vallée (1963-2021) mostra boa parte da aventura de Strayed pelos cerca de 1.800 quilômetros da Pacific Crest Trail, a trilha que cruza toda a Califórnia, da fronteira com o México até os limites com o Canadá, mais de quatro meses de temperaturas escaldantes no começo, neve no final e os contratempos que obrigam os peregrinos a se valer de frieza e do desejo de se superar a toda hora. Nick Hornby, dá fôlego à outra de suas mágicas adaptações — Hornby é o autor de “Alta Fidelidade” (1995), livro que deu origem ao filme homônimo de Stephen Frears lançado em 2000, do qual também é roteirista —, transformando passagens lancinantes de “Livre — A Jornada de uma Mulher em Busca do Recomeço”, (2012), de Strayed, sua dedicada colaboradora, numa seleção de poesia incômoda e estimulante, uma das marcas do filme.

Ainda no começo, Cheryl se senta à beira de um precipício, tira um pé da bota de cadarços vermelho-cereja e arranca a unha do dedão esquerdo. Ela enverga com a dor e lá se vai a bota ribanceira abaixo, um batismo de sangue que faz questão de referendar arremessando a outra metade do calçado. Cenas assim capturar o interesse do espectador de imediato, convencendo-o de que Reese Witherspoon é a mulher certa no lugar adequado.

Depois de trabalhos irregulares na esteira de “Johnny & June” (2005), a biografia de Johnny Cash (1932-2003) e June Carter (1929-2003) dirigida por James Mangold, pela qual ganhou o Oscar de Melhor Atriz ao dar vida à rainha consorte do country americano, Witherspoon acerta o passo numa composição agridoce, seca e untuosa a um só tempo, inclusive nos vários flashbacks em que a protagonista lembra-se de passagens que não deixam de ter contribuído para que tomasse a decisão mais radical quanto a seu futuro — ou a falta dele.

Nesses segmentos, Laura Dern na pele de Bobbi, a mãe de Cheryl, monopoliza os olhares quase tanto como fez em “História de um Casamento” (2018), de Noah Baumbach, que, como aconteceu com Witherspoon, também deu-lhe o Oscar, de Melhor Atriz Coadjuvante. Vallée opta, acertadamente, por dedicar bons minutos do enredo a documentar a relação de Cheryl e Bobbi, cuja sincera alegria de viver não resiste a um câncer de medula. Evidentemente, isso não explica tudo o que se passa com Cheryl, que aos 27 anos e divorciada, parece ter sufocado o gosto pelo sexo casual com estranhos, justamente a prática que minou seu casamento com Paul, do ótimo Thomas Sadoski. Além do vício em heroína.

A sucessão de dificuldades com o clima, a alimentação regrada e meio insossa, a falta de banho, o silêncio onipresente, ajudam Cheryl a tornar-se quem é, ainda que nos livros de presença dos viajantes, nunca se furte a deixar mensagens um tanto esquizofrênicas, misturando sua identidade à de Emily Dickinson (1830-1886), Robert Frost (1874-1963) ou John Micherer (1907-1997). Em 15 de setembro de 1995, com o fim da empreitada, ela volta a ser só Cheryl Strayed. E se redescobre dona de si.


Filme: Wild
Direção: Jean-Marc Vallée
Ano: 2014
Gêneros: Aventura/Thriller/Biografia 
Nota: 9/10