Tenso e angustiante, filme da Netflix te levará para dentro dele e não deixará você piscar por 108 minutos Tina Harden / Koch Films

Tenso e angustiante, filme da Netflix te levará para dentro dele e não deixará você piscar por 108 minutos

“Zona de Confronto” foi lançado fora dos Estados Unidos com o sugestivo título de “Shorta”, gíria árabe que, como se lê no primeiro quadro do thriller dos diretores dinamarqueses Frederik Louis Hviid e Anders Olholm, se refere a agentes da polícia. Prematuramente, fica claro a que espécie de filme se vai assistir. Hviid e Olholm são dois homens brancos, instruídos e endinheirados que, por uma conjunção de justificativas, viram-se impelidos a conhecer melhor como operam os destacamentos da polícia de Copenhague, não no centro ou nos bairros nobres da capital da Dinamarca, mas no subúrbio, de forte presença paquistanesa, argelina, marroquina.

A “escória de Mohammed”, como parte da população nativa se refere aos árabes — embora, como todo mundo deve saber, nem todo árabe seja muçulmano, com a agravante de muitos terem nascido em solo dinamarquês — está dando trabalho. A obrigação da polícia é mantê-los na rédea curta. Não parece razoável banir esses cidadãos da vida nacional, como querem políticos de ultradireita que se projetam na vida pública justamente por causa do discurso extremista, desabridamente alinhado ao nazifascismo, mas, por outro lado, tampouco é correto vituperar aqueles que defendem que todos sejam, de fato, iguais aos olhos da lei e paguem por seus desvios, tenham a origem que tiverem e independentemente da posição que ocupem na pirâmide socioeconômica.

O roteiro dos diretores se espraia sobre o cotidiano da polícia de Copenhague na figura de Mike Andersen e Jens Høyer, dois agentes que cortam um dobrado no patrulhamento de rua todo santo dia. Mais experiente, Andersen, vivido por Jacob Hauberg Lohmann, já está acostumado com os achaques dos superiores, os esquemas para faturar algum por fora, o suborno, a interferência de políticos, motivos de escândalo para Høyer, interpretado por Simon Sears, que não só se preserva íntegro como deixa no ar algumas ironias quanto às atitudes do parceiro.

Apesar da pouca afinidade moral, os dois protagonistas se dão bem e servem de contraponto psicológico um ao outro. Com muito jeito, Andersen mostra ao colega que é loucura querer tomar aplicadores da ordem pública à luz de defensores incondicionais da sociedade: a polícia está mais para uma mãe, e uma mãe que se preza não é amiga de seus filhos, mas sua professora, censora e, se preciso, seu carrasco. Høyer, por seu turno, se esforça por despertar no outro a capacidade de refrear seus impulsos ou, pelo menos, não se exceder nos castigos, a fim de rechaçar a possibilidade de abusos como o que redundou na morte do ex-vigilante George Floyd (1973-2020), em 25 de maio de 2020, escancarando uma vez mais a deficiência da polícia americana em lidar com questões que exijam um pouco mais de empatia, sensibilidade, destreza, inteligência emocional.

Despachados a fazer a ronda em Svalegarden, gueto de imigrantes árabes majoritariamente islâmicos, o tira mais novo vai concluir na prática que seus valores não têm respaldo na vida como ela é. Ao avistar Amos, um morador já conhecido das autoridades, Andersen acelera a viatura, para ao lado do garoto e vai com tudo. Suspeitando que o personagem de Tarek Zayat já se preparasse para alguma operação delitiva, o policial começa a revistá-lo, e Amos não se acovarda. Indaga-o sobre o porquê de estarem sempre por perto, sempre tão hostis, e, pelo sim, pelo não, saca o celular e filma toda a cena.

Contando agora com a motivação ideal, Andersen leva o procedimento até o fim, deixando Amos só de cueca no meio da rua, o que o enfurece. Já sem o telefone, um grupo de pessoas sentadas por ali é que filma a revista, tomadas de uma genuína revolta. Quando aquela pantomima chega ao fim, o rapaz tem uma reação impensada, que gera mais truculência, e essa truculência volta-se contra os policiais, perseguidos e encurralados na lavanderia de um prédio de apartamentos populares. Quando ficam sabendo que o personagem de Lohmann é o responsável pela morte de Talib Ben Hassi, de Jack Pedersen, durante uma inspeção pessoal, da mesma forma que Floyd — os diretores até incluem no roteiro o “Não consigo respirar!” dito pelo americano —, a tensão sai do controle definitivamente.

O arco da dubiedade moral de Andersen desencadeia o componente de violência física que faltava em “Zona de Confronto” e o sangue, inclusive o do rottweiler que persegue o policial no corredor do apartamento de Amos, passa a se fazer cada vez mais presente. O curioso é que a escalada de violência no longa não contribui em nada para o aperfeiçoamento do conflito, e fica longe de um clímax.

A sequência ao episódio dá a entender que tudo vai mesmo continuar como sempre fora: a polícia, racista, xenófoba, reflexo da sociedade que a legitima, só tem por método de combate ao crime a suspeita irracional, fundada em preconceitos injustificáveis e contraproducentes, porque nunca são tolerados pelos tribunais e, também por essa razão, o feitiço vira contra o feiticeiro. O que resta para que se perfaçam 108 minutos mais enfara que mesmeriza, e, assim, o drama de Amos, intensificado com a entrada em cena de Abia, papel de Özlem Saglanmak, resta meio comprometido pela falta de unidade narrativa.

Hviid e Olholm abrem a discussão acerca dos problemas axiais da polícia, sem dúvida uma decisão louvável, mas que requer parcimônia, empenho, vontade e paixão, nessa ordem. Próximo ao desfecho, comovente, os diretores talvez tenham querido dar a ideia — lírica, mas irreal — de que policiais como Andersen têm atuação limitada nesse meio. A verdade é que esses maus profissionais dispõem de um instinto de sobrevivência muito aguçado e que lhes permite trilhar uma longa carreira e fazer fortuna nas corporações a que estão vinculados. Até que a casa cai.


Filme: Zona de Confronto
Direção: Frederik Louis Hviid e Anders Olholm
Ano: 2020
Gêneros: Ação/Policial
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.