Comparada à obra-prima de José Saramago, sequência de um dos filmes mais assistidos da história da Netflix vai te deixar sem chão Lab Creative Studio / Netflix

Comparada à obra-prima de José Saramago, sequência de um dos filmes mais assistidos da história da Netflix vai te deixar sem chão

Que a humanidade perde-se — e deixa-se perder — nos anseios da salvação que não merece todos sabemos. O que não se compreende, pelo menos não com a riqueza necessária de minúcias, é de que forma poderemos resistir aos inimigos que nós mesmos embalamos, cada vez mais destemidos, ávidos por tomar o que consideram ser seu por direito, já que nosso destino parece não nos interessar. “Bird Box Barcelona” sai de um axioma deveras exclusivo para um apanhado geral acerca das tantas humanas misérias, insistindo no argumento da morte à luz da possibilidade última de alguém se redimir, mas adicionando à massa o componente apocalíptico, o que sem dúvida torna o enredo muito mais selvagemente desconfortável, a começar pela estética. O trabalho dos irmãos Àlex e David Pastor, continuação do excelente filme de Susanne Bier, pula de sequências aparentemente descoordenadas entre si para o eixo em torno do qual move-se a história, replicando uma estética que a literatura já havia vislumbrado com sucesso quase três décadas atrás.

Sebastián e sua filha são o próprio retrato do júbilo deslizando sozinhos pela quadra de um ginásio vazio. Anna, a personagem de Alejandra Howard, respiro de graça e momentâneo desassombro frente à existência, realiza boas evoluções com os patins que ganhara de aniversário do pai, ao passo que o sol invade aquele lugar um tanto medonho pelas janelas ensebadas, lirismo possível na fotografia de Daniel Aranyó. O que se segue afronta a lógica, mas o roteiro dos Pastor sabe como amarrar os fios soltos da narrativa, encarregando Mario Casas de assumir as rédeas da história. O engenheiro Sebastián, seu anti-herói, bate-se com um trio de pistoleiros cegos, escapa por pouco, e acha um grupo de outros andarilhos desditosos, peregrinando como eles por um planeta sem nada mais a oferecer, embora ainda possam haver alternativas. Casas revela-se à vontade na pele do messias assolado pelas chagas que martirizam seu séquito, e feito Moisés, instrui seu povo rumo à terra prometida, à procura do gerador de energia que abrevie seu sofrimento. Mas antes, precisa de algumas horas de sono e de quem cure suas feridas.

Ao elemento místico do fim e do recomeço da vida, com Sebastián liderando aquela massa de gente andrajosa e esfaimada como se atravessassem o mar Vermelho, os diretores-roteiristas vão agregando iluminações a exemplo do poder de se observar o luto e se propor ressurgir por meio dele e com ele. No segundo ato, uma cena com Sebastián e Anna no terraço de um prédio, enquanto pessoas e cães vendados caminham na rua cheia de veículos esquecidos há algum tempo, dá ao espectador a certeza de que existe mesmo essa intenção, replicando-se muito do que o brasileiro Fernando Meirelles disse em “Ensaio sobre a Cegueira” (2008), baseado no romance homônimo do português José Saramago (1922-2010).


Filme: Bird Box Barcelona
Direção: Àlex e David Pastor
Ano: 2023
Gêneros: Terror/Mistério/Ficção científica
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.