Romance mais aguardado de 2023 acaba de chegar à Netflix Christian Geisnaes / Netflix

Romance mais aguardado de 2023 acaba de chegar à Netflix

Num mundo sem internet ou redes sociais, grã-finos de estirpes variegadas driblavam o esplim tramando planos refinados uns contra os outros, como se lê em “Ligações Perigosas” (1782), o típico novelão, saído da pena de Choderlos de Laclos (1741-1803), esse desabridamente antropofagizado pela cultura pop contemporânea em boas versões pós-modernas a exemplo de “Segundas Intenções” (1999), dirigido por Roger Kumble, e o recentíssimo “Justiceiras” (2022), levado à tela por Jennifer Kaytin Robinson.

Essas intrigas palacianas até ficam parecendo muito distantes de alguém que faz a vida neste século, mas Bille August, como sempre, dá um jeito fazer com que vençamos a resistência inicial. “Ehrengard: A Ninfa do Lago” é mais um capítulo da vasta obra do diretor, em parceria com o filho, o roteirista Anders Frithiof August, quanto a desvendar a literatura de sua Dinamarca, sutil, mas contundente; elegante, mas corajosa.

A história de um aristocrata que tem de ir além de seus talentos num ofício muito particular sai das páginas de Karen Blixen (1885-1962) para ganhar as cores e o movimento de que August pai entende como poucos. A adaptação de “Ehrengard” (1962), um dos últimos trabalhos da escritora, é exatamente o que se espera num filme sobre romances malogrados, trapaças do destino, mágoas recalcitrantes e falsos amores.

Uma cadeia de montanhas de fazer todo queixo despencar abre o filme, que vai se encaminhando para ambientes um pouco mais intimistas, até chegar a uma mulher que se arruma para uma partida de esgrima. Essa metáfora saborosamente perspicaz dá o tom de

“Ehrengard”, que vai saltando de quadro em quadro até chegar a um palácio branco de dimensões faraônicas, onde um homem faz o retrato de uma senhora em trajes imperiais e uma coroa de ouro branco e brilhantes. Depois de longas horas na mesma posição, ela procura acomodar-se melhor, e franze o vestido azul de seda. O retratista se aproxima, chega cada vez mais perto, até ficar cara a cara com a respeitável dama, que não resiste, puxa-o para si e o beija com paixão.

Cazotte sabe que não pode rejeitar tão desabridamente os ímpetos sexuais da grã-duquesa, e se furta a suas investidas com rara elegância; essa primeira sequência, reveladora em sua picardia calculada, presta-se a fio condutor de todo enredo, com o pintor vivido por Mikkel Boe Følsgaard e a aristocrata de Sidse Babett Knudsen dando um aperitivo leve, mas marcante, do que se vai ver ao longo dos 94 minutos que ao se esgotarem deixam um gosto agridoce. A personagem de Knudsen nota a zelosa descortesia da rejeição, ainda mais ofensiva em se considerando a abissal diferença de classes entre os dois, mas admira a sagacidade dele.

Ela está convencida de que Cazotte pode ser a solução definitiva para um problema que aflige a realeza de Bebenhausen, o reino fictício gerado da pena de Blixen: seu filho, o príncipe Lothar, de Emil Aron Dorph, tem de dar um herdeiro à dinastia, ou ascenderá ao poder o cunhado da grã-duquesa, personagem de Jacob Lohmann. Cazotte até aprecia a proposta, mas se apaixona por Ehrengard, a dama de honra, e isso pode arruinar seus sonhos e colocar sua cabeça a prêmio.

Aparecendo bissextamente, mas nos momentos certos, a mocinha de Alice Bier Zanden é contraponto de inocência de que uma história tão inclinada à sordidez precisa. Tal sensação se comprova no encerramento, com Cazotte em Roma aprimorando sua técnica e já tido como o casanova do norte que leva para a cama donzelas nada ingênuas, garantindo a perpetuação da nobreza europeia. 


Filme: Ehrengard: A Ninfa do Lago 
Direção: Bille August 
Ano: 2023
Gêneros: Comédia/Drama/Romance
Nota: 9/10