Tô Tarado: uma saga sertaneja de solidão e sofrência

Tô Tarado: uma saga sertaneja de solidão e sofrência

Morar na roça é o trem mais ruim que tem, doutor. Digo e provo. Primeiro porque não tem mulher. Só umas primas muito feias e que moram longe, lá perto do rio. E furunfar com prima não dá. Nasce gente troncha, feito o Toinzim do Manezim, que é cocho e, ainda por cima, corcunda. Um trem desajeitado demais da conta.

Então eu ficava nesse zero a zero, só pensando em safadeza e sacanagem. Pensava até em comer galinha, pro senhor ver o tamanho do desespero. Foi aí que, uns três meses pra trás, depois de maio, mais ou menos, a coisa deu uma melhoradinha.

Mudou uma família pra roça aqui do lado e tinha uma moça até que ajeitadinha. De longe, era até bonita. O problema é que a moça era mudinha. Falava tudo enrolado. Me contaram que ela cortou a língua com a faca da avó, que ficava guardada num baú debaixo da cama. Tem base, doutor? Tanta coisa pra enfiar na boca e a mulher enfia uma faca? Tem gente que é besta demais da conta, não é não?

Mas eu ainda não sabia que a mudinha era muda, então fui lá na porteira e puxei conversa mais ela.

“Oi. Cê vem sempre aqui?”

E ela:

“Hmm ahnng hhhmm ghhoohan?”

E eu:

“Uai, sô, que trem doido é esse?”

E ela:

“Ammghh hmmm hoooummahnn…”

“Hein?”

“Mm ahhnn hummohmm…”

E assim foi. E é claro que eu comecei a concordar com tudo o que ela falava, né? Estava no desespero, doutor.

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“Nossa! É mesmo? Conta mais!”, eu dizia.

“Ammgh hmmm fhhhh!”

“Não acredito! E aí?”

“Humghh fuummm hhouuumamm”.

“Vixi!”

“Ahmm humm hlummm”.

Eu não tenho culpa se aconteceu desentendimento entre eu mais ela. Foi problema de comunicação, questão de linguagem, um trem doido desse. O senhor precisa entender. Foi a prosódia que gerou discórdia, doutor. Porque eu, do meu lado, achei que estava entendendo tudo e concluí, a bem da verdade, que a mudinha também me entendia, uai.

Na minha condição de desespero, coloquei meu melhor sorriso na cara e perguntei pra ela:

“E aí, mudinha, bora furunfar atrás da moita? Hein? Hein?”

E ela:

“Hmmm anhhghh uumm fumhamam.”

Achei que era um sim, mas era um não.

Aí eu lasquei um beijo na danada, ela me sentou a mão na cara e começou a gritar assim:

“AAAHHMMMM HUMMMM GHHHUMMMMM ONCORRMM!”

 A família dela viu aquilo e veio pra cima de mim. Tudo com porrete na mão, doutor. Nunca levei tanta paulada na vida. Apanhei muito. Apanhei demais da conta. Apanhei feito cachorro bravo em porta de venda. Olha, tô com o braço ruim, a perna manca, o olho inchado e a cabeça doendo. Não posso nem apanhar café pro Zé Donato e tô sem receber nada, doutor. Eu sou arrimo de família, minha mãe depende de mim, o senhor precisa entender. E é por isso que eu quero dar parte dessa ariranha peçonhenta que não diz coisa com coisa. Pode fazer o B.O., doutor. Pode fazer o B.O. porque eu quero indenização. Quero sim. Sei que eu tô tarado, mas a culpa não é só minha. A culpa é da mudinha.