A obra-prima quase perfeita na Netflix que é um diamante para a alma Divulgação / Synapse Distribution

A obra-prima quase perfeita na Netflix que é um diamante para a alma

Seduzido pelas tantas ilusões de poder que lhe atravessam o caminho, o homem toma sua cruz e segue, reto o quanto pode, desviando-se do encanto das tentações que dão algum tempero à vida e mergulhando no mar cinzento e morno de seus sonhos frustrados. Forçado a viver no reino das aparências que não se sustentam, o gênero humano vai sufocando as quimeras todas que nascem consigo, apesar de inepto quanto a definir as que têm qualquer indício de plausibilidade e as que orbitam mesmo no universo do absurdo, fundamentalmente perdido, clamando pelo salvador que, imagina, sempre há de vir no momento exato. Enquanto não se dá essa transformação, viver se nos parece como uma sucessão das questões que dirigimos a nós mesmos, cada qual repleta de outros tantos dilemas existenciais, os profundos e os que só aborrecem. A única força com poder de barrar esse movimento, que traz à superfície nossas fragilidades e nossas misérias, é o resgate do que de genuinamente precioso fomos nos municiando ao longo da vida, mas de que por ou uma razão tomamos distância, medida insensata que quase sempre acarreta um custo fabulosamente alto.

Estamos todos a mercê das ciladas que nos urde o acaso, tornadas ainda mais perigosas com a interferência de nosso próprio desespero. Conseguimos escapar desses perigos não sem as cicatrizes que descrevem a trajetória de cada um, marcas que encerram os sucessos de que nos lembramos e que nos iluminam a estrada e os malogros de que tentamos nos esquecer, ansiando por enterrar parte indelével da nossa natureza. Os sentimentos mais rasteiros que borbulham em cada um de nós são o mote de “O Destino de Haffmann”, o drama em que o francês Fred Cavayé chega a lugares muito precisos saindo de premissas bastante genéricas. História de confiança, honra, deslealdade e traição, o filme de Cavayé dá novo fôlego à peça de Jean-Phillippe Daguerre, apresentada pela primeira vez em 2016, ganhadora do Molière, um dos mais prestigiosos do teatro francês.

A Paris de 1941 goza da serenidade e da atmosfera feérica que honram seu apelido. Contudo, feito na calmaria que precede as grandes tempestades, não demora para que a Cidade Luz tenha de arrostar o maior de seus desgostos. A proximidade da invasão nazista torna-se real e judeus de todas as origens passam a ser caçados como animais, a mando de Hitler. O homem a que se refere o título é o joalheiro bem-sucedido interpretado magistralmente por Daniel Auteuil, dominado pela angústia de saber-se obrigado a desfazer-se do negócio. Aos poucos, a adaptação do texto de Daguerre feita por Cavayé e Sarah Kaminsky disseca a podridão dos estrategemas de que a Alemanha lança mão para coagir judeus como Haffmann a se amontoarem nos guetos parisienses, idealizados com o propósito de segregar esses cidadãos para, o que não se desconfiava ainda, aprisioná-los, tosar-lhes os cabelos e despachá-los para os trabalhos desumanos e a consequente morte, por inanição, tifo ou pela exaustão mais impiedosa, num dos quarenta mil campos de extermínio em território alemão.

As expressões de Auteuil, de vívido sofrimento, são perfeitas quanto a encarnar o desalento de seu personagem, que se ilude com uma vã possibilidade de reaver sua loja ainda que num futuro incerto. Para tanto, transfere a propriedade do estabelecimento a François Mercier, o talentoso assistente vivido por Gilles Lellouche, e a partir desse momento, Cavayé aprofunda-se na análise psicológica dos dois homens, ressaltando a angústia de um Haffmann sem outra saída que não fosse confiar no subalterno, o que, claro, não poderia acabar bem. A covardia de Mercier degringola numa cornucópia de pequenas e grandes tragédias íntimas, como um casamento que se esfacela e sua amizade com oficiais nazistas, que volta-se contra ele. No desfecho, os papéis de cada um se invertem e se confirma a máxima de que a sorte é como a guerra: não dura muito.


Filme: O Destino de Haffmann
Direção: Fred Cavayé
Ano: 2022
Gênero: Drama
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.