O diagnóstico da tristeza

O diagnóstico da tristeza

Certos perrengues exame nenhum diagnostica. Lourdes perdeu a mãe fazia dois anos. Perdeu-a, literalmente. Padecia a pobre senhora de doença de Alzheimer em estágio avançado. Certo dia, alguém esqueceu aberto o portão da casa onde moravam e a velhota se espreitou feito um cachorrinho matreiro, só que sem correria, sem ansiedade e sem apavoramento. Saiu andando nos suaves passos da maturidade por um mundo repleto de paisagens e de pessoas que jamais houvera visto antes.

Lourdes quase endoidou também quando soube do sumiço da progenitora. Por mais que se esforçasse, por mais que se instruísse dos recursos disponíveis, só veio a reencontrá-la cerca três meses mais tarde, numa remota cidadezinha situada a duzentos quilômetros dali. A velhota fora sepultada no cemitério público municipal como uma indigente, após ser atropelada por um treminhão de cana-de-açúcar no único trevo da cidade. A região era pujante na produção de álcool e de melodramas.

Parece uma história trágica demais para ser verdadeira, mas, coisas estranhas acontecem todo santo dia. Muito mais do que os outros irmãos, Lourdes tinha uma ligação afetiva umbilical com a mãe, a ponto de se culpar miseravelmente por não ter percebido que portão se abrira por obra de alguém, do acaso ou do vento que assoprava a despeito da expectativa dos homens.

Desde que o sumiço da matrona ficara esclarecido, tomaram-se as medidas legais cabíveis para a exumação do corpo, a identificação formal dele, o funeral e um novo enterro. A partir daquele episódio malogrado, Lourdes nunca mais fora a mesma pessoa e começou a apresentar sintomas corporais esdrúxulos e invulgares, do tipo perder o controle da micção, ficando, portanto, à mercê dos espasmos de uma bexiga que parecia demasiadamente destrambelhada. Se o desejo de urinar surgia, se Lourdes não encontrava um banheiro próximo disponível, acabava molhando a roupa como se fosse uma criança em tenra idade.

Pesquisou no Google, conversou com as comadres, consultou vários especialistas, realizou inúmeros exames complementares, desde os mais simples até os mais complexos e caros, só que nada nem ninguém encontrava a causa do humilhante distúrbio vesical. Até o dia em que sofreu uma espécie de colapso nervoso e foi parar num pacato postinho de saúde da periferia da cidade em que residia, onde foi atendida por um prestimoso médico generalista que sabia de tudo um pouco em matéria de doenças e de cismas.

Após acordar da efusão de generosas doses de sossega-leão, Lourdes conseguiu interagir com o senil doutor, que parecia velho demais para sentir pressa. O ancião contou sorridente que já dispunha de tempo de serviço de sobra para se aposentar, mas, não estava psicologicamente preparado para largar o batidão da atribulada vida de clínico geral para curtir o ócio. Até que fosse forçado pelo cajado da legislação vigente, optava em continuar atendendo os pacientes pobres do condado, enquanto ainda gozasse de saúde físico-mental.

Por falar em sanidade mental, o carismático esculápio informou a Lourdes que a origem da sua bexiga nervosa não apareceria em exame nenhum que ela fizesse, mesmo que se consultasse num hospital de ponta na ponta de cima da América do Norte, porque aquele distúrbio nas partes baixas era um tipo de diagnóstico só se fazia conversando em delongas com o paciente afetado. Então, dialogaram por mais tempo do que o habitual para médicos e pacientes. Pelos cálculos do senil doutor, que fazia piadas de salão em meio ao caos estrutural do decadente estabelecimento sanitário, a gênese do distúrbio urológico da Lourdes era a morte bruta e abrupta da mãe. Numa situação lastimável como aquela, o remédio era remediar, o mais rápido possível, na medida do impossível, pelo seu próprio bem, antes que brotasse um algo pior no dentro dela.

Daquele dia em diante, a bexiga da Lourdes nunca mais chorou. E, hoje, ela trabalha como voluntária numa casa que acolhe idosos esquecidos pelas famílias.