A pobreza tem zonas particularmente brumosas. Alguém pode nascer num lar tão pobre que deixa-se entorpecer por esse estado, como se toda a sua história já viesse previamente escrita, e o final não lhe reservasse diferença alguma sobre o que se viu no início. Contudo, tipos como o personagem central de “Um Homem de Sorte”, fazem dessa condição, cujo opróbrio só ele mesmo conhece, o combustível para dobrar a vida a seu talante, malgrado nunca torne-se tão próspero quanto pensa merecer. Num drama ácido, corrosivo, e que escandaliza por também ser belo, o dinamarquês Bille August apresenta ao público a alma torturada que protagoniza seu filme, paralisado numa espiral que mistura aspirações por fortuna e reconhecimento, de um lado, contra um sistema vigoroso, organicamente tacanho, opressivo, e que não tem a menor intenção de ceder espaço a quem quer que seja, do outro. Por que então mundos paralelos, avessos entre si, incongruentes, num choque eterno e invencível, ousam se cruzar, afinal? Essa é a pergunta que o filme de Bille August tenta responder.
O diretor e seu filho, Anders Frithiof August, adaptaram o romance “Lykke-Per”, escrito pelo compatriota Henrik Pontoppidan (1857-1943), prêmio Nobel de Literatura de 1917, e publicado em oito volumes entre 1898 e 1904, de modo a conservar a impressão de que a corda do melodrama é puxada com tamanha selvageria, mas com igual medida de cálculo, que, em diversos momentos, se pensa que ela não vai suportar. Não obstante, August, cujo “Pelle, o Conquistador” (1987) foi agraciado com o Oscar de Melhor Filme Internacional em 1989, sabe muito bem a hora de sair de cena e deixar que seus personagens falem por si sós. O aspecto destacadamente plangitivo da história é o que prevalece; entretanto, o pulo de gato é o jeito astucioso como escolhe dizer o que nunca resta claro, mas cuja genuína natureza sabemos bem qual é.
O desdém de Peter Andreas por seu pai, o vigário intransigente de Anders Hove, o leva para Copenhague, bem longe da península da Jutlândia, onde nascera e fora criado, a fim de estudar engenharia. Peter é dominado por tamanha aversão diante de seu passado e sua vida até então que começa a rejeitar o próprio nome e passa a ser conhecido por Per, o Per sortudo, no dinamarquês original do livro de Pontoppidan. O protagonista, indomavelmente sonhador, é absorvido à perfeição por Esben Smed, que alcança as profundezas desse homem aparentemente ditoso socorrendo-se das valiosas pistas do texto de August pai e filho, mas encontra ele mesmo a chave para fazer de Per um anti-herói memorável. A ambição que o constitui sai das trevas à medida que se desdobra o pano de fundo da trama, a invenção de um mecanismo capaz de aproveitar a força do vento e da água para gerar energia elétrica, uma extravagância ainda restrita à aristocracia em princípios do século 20, mas cada vez mais imprescindível numa sociedade que se industrializava a galope.
Impressiona o aspecto criativo, até profético, de Pontoppidan, ele mesmo um engenheiro de formação convertido ao expediente jornalístico, de esquadrinhar essas possibilidades, flertando a um só tempo com a defesa do meio ambiente, a estabilização do capitalismo de mercado e o desenvolvimento científico. Já em sua porção filósofo, se nota a urgência quanto a enfatizar que a nação que detiver mais meios de produzir energia — e energia limpa, embora a nomenclatura ainda não estivesse disponível —, deterá também o poder econômico. Para que tenha alguma chance de ver sua ideia prosperar, esse Per malsucedido, de todo alijado das altas rodas da burguesia na cidade em que escolheu morar, tem de contar com uma boa rede de contatos, no jargão contemporâneo, e, por óbvio, patrocínio, expediente que faz o mundo girar desde o princípio dos tempos. É nesse momento que August encaminha o longa para o romance de tintas algo funestas entre o personagem de Smed e Jakobe Salomon. Na pele de uma mulher ainda bonita, mas já sentindo o peso dos anos — tanto mais por não ter se casado —, Jakobe, filha do meio de uma família influente, ao contrário do que tudo levaria o público a imaginar, aceita a corte de Per. No entanto, bombardeada pelo que andam dizendo os aristocratas que frequentam a casa do pai, Phillip, de Tommy Kenter, e, claro, pelo assédio moral do chefe da família, que como as velhas raposas, tão espertas quanto carniceiras, fareja a personalidade oportunista do rapaz, opta pelo rompimento. Não se pode escapar à evidência de que, em Jakobe sendo judia e possível herdeira de uma fortuna milionária e Per um homem cristão, ainda que apóstata, e o mais relevante, pobre e nada propenso a se tornar um bajulador, a relação dos dois estaria condenada desde antes de se consumar. Tal como o protagonista, Katrine Greis-Rosenthal incorpora a angústia de que Jakobe não pode se livrar, e as cenas dos dois, malgrado quase sempre raspando no dramalhão, obedecem rigorosamente a um pacto tácito, como se a disciplina escandinava precedesse ao sentimento. Dá certo.
O filme de Bille August, definitivamente, é um dos mais elegantes do cinema deste século, mesmo em se refinando o corte e admitindo somente os produzidos pela crescente indústria cinematográfica danesa, plena de genuínas obras de artes. O diretor combina a elaboração intelectual de um enredo cuja lógica é misturar argumentos diversos, antagônicos muitas vezes — veja-se o que Jakobe faz com a parte que lhe cabe do patrimônio dos Salomon — à excelência da técnica, preconizada sobretudo pela fotografia de Alar Kivilo. A sequência da despedida de Per e aquela que poderia ter sido a mulher de sua vida, é sutil, mas impactante, e prova que, embora se use uma imagem gasta, justamente pela força plástica que encerra, em cada filme esse dispositivo tem seu próprio efeito. Sorte de quem o nota.
Filme: Um Homem de Sorte
Direção: Bille August
Ano: 2018
Gêneros: Drama/Romance
Nota: 10