Filme brasileiro, na Netflix, é um soco no estômago e você ainda não assistiu Divulgação / Paula Prandini

Filme brasileiro, na Netflix, é um soco no estômago e você ainda não assistiu

O inferno são os outros, diria Jean-Paul Sartre (1905-1980) legando à eternidade certo reducionismo vagabundo da condição humana. Punguista intelectual, Sartre desembainhou uma espada metafórica, tomou de assalto as ideias de Kierkegaard e transformou o existencialismo, com a ajuda de sua companheira, a também filósofa Simone de Beauvoir (1908-1986), em qualquer coisa de muito semelhante ao enredo de “Última Parada 174”, a narrativa ficcional que sucedeu o documentário “Ônibus 174” (2002), de José Padilha e Felipe Lacerda, sobre o sequestro ao coletivo cujo itinerário ligava o Parque Lage, na rua Jardim Botânico do bairro homônimo, um lugares mais aprazíveis do Rio de Janeiro, à praça Tiradentes, no centro da cidade, muito menos glamorosa e nada bucólica, mas que também tem seus truques. O então prefeito Luiz Paulo Conde (1934-2015), tratou de, como uma das últimas providências de sua gestão, rebatizar a linha, o que só aconteceu em novembro de 2001, sete meses depois do episódio, implorando que o mundo não mais se lembrasse de um dos mais tristes episódios da violência urbana que grassa na América Latina. O filme de Bruno Barreto está para o cinema (ou mesmo para a crônica policial do Rio, se o quiserem) como o existencialismo sartriano-beauvoiriano está para a filosofia: uma barafunda tal que, ainda hoje, um leigo não alcança nenhuma conclusão quanto ao que em verdade se passou. No caso dos estudos de Sartre e Beauvoir, tudo quanto disse Kierkegaard sofreu distorções miseráveis. Luterano fervoroso, o dinamarquês não via sentido em dissociar Deus e as escolhas quase sempre equivocadas dos homens, sendo que Aquele existia também (mas não só) para que este reconhecesse seus pecados, se contristasse, quiçá até se infligisse castigos físicos, mas procurasse a redenção enquanto fosse tempo, visse a luz, caísse de seu cavalo magro e, por óbvio, mudasse de vida, como Paulo de Tarso. E a conversão não cai da árvore da vida como um fruto sumarento e repleto das calorias que nutrem o homem e transformam-se em vigor e fonte de iluminações as mais diversas: há que se desejá-la, profunda e resolutamente, como o protagonista de “O Sonho de um Homem Ridículo” (1877), de Dostoiévski, que ansiava por alguma coisa que lhe subvertesse a razão, a implacável razão que muitas vezes degenera em loucura. No caso do filme de Barreto, alguma tentativa de se chegar a facticidade dos acontecimentos, com a licença da redundância, parece uma vã promessa de felicidade, como a beleza para Stendhal, ou as juras de amor dos apaixonados, para o padre Vieira, escritas nas ondas do mar, com o vento.

A ousada escolha de bifurcar a trama nas figuras de Sandro Barbosa do Nascimento (1978-2000), e um certo Alessandro, logo depois do prólogo, talvez funcionasse caso se estivesse diante de um enredo apenas imaginado, “baseado em fatos reais”, como o jargão tratou de eternizar. Uma vez que se tem uma história mais que real, crua, cruenta, essas experimentações discursivas além de confundirem fedem a desrespeito, a zombaria mesmo; se não, vejamos. O roteiro de Bráulio Mantovani abre com a sentença “Um menino chamado Alessandro”, que não foi o autor dos crimes sobre os quais Barreto tenta falar já na iminência do desfecho. Os elementos dos quais o diretor lança mão a fim de contextualizar “Última Parada 174”, como a exibição de um capítulo da versão original de “Paraíso”, novela exibida pela Rede Globo de Televisão entre 23 de agosto de 1982 e 26 de março de 1983, chegam a ser saborosos, mas a imagem angelical de Cristina Mullins, quase uma santa mesmo, e Kadu Moliterno, dois dos grandes personagens nascidos da pena de Benedito Ruy Barbosa, não é o bastante para capturar a atenção do espectador. Barreto, a propósito, é mestre na mágica barata de fundir a linguagem eminentemente visual do cinema aos caudalosíssimos textos da teledramaturgia nacional, a exemplo do que se assiste em “Dona Flor e Seus Dois Maridos” (1976), uma das maiores bilheterias do cinema brasileiro, é “Gabriela, Cravo e Canela” (1983), ambos da lavra bibliográfica do grande Jorge Amado (1912-2001), mas aqui sua feitiçaria gora. A seriedade, a melancolia, o trágico do assunto clamam por secura, por sobriedade, por firmeza, tudo quanto “Última Parada 174” não tem.

Começa-se a falar sobre “um menino chamado Sandro”, o protagonista do longa, já quase na metade do filme, e como sói acontecer nessas circunstâncias, o carisma do ator principal é quem salva a lavoura. Magnético, preciso, Michel Gomes incorpora Nascimento em momento diversos da vida acidentada do personagem, tipo sobre o qual considerações mais apressadas decerto hão de resvalar na grosseria e no preconceito. São raras as qualidades que se podem encontrar nessa figura como que talhada para a marginalidade de acordo com a visão de Barreto, e o anti-herói de Gomes vai mesmo metamorfoseando-se num vilão perigoso e repulsivo, quem sabe até um psicopata, diante dos olhos — e é esse o pulo do gato em 111 minutos de projeção. O espectador flagra-se a todo momento balançando entre a piedade humanista de Terêncio (185 a.C. – 159 a.C.) — que torna possível enxergar em Nascimento um indivíduo, uma pessoa, que sobreviveu à chacina perpetrada por um esquadrão da morte ligado a policiais militares nas imediações da Igreja da Candelária em 23 de julho de 1993, ao trauma de assistir ao homicídio da mãe, assassinada a facadas na favela em que moravam, na periferia de São Gonçalo, na Baixada Fluminense, ao cerco da bandidagem estrito senso, pulverizada entre menores de rua que não encontram saída honrosa na zona de perigo sem fim que é o Brasil, desde sempre — e a incredulidade, raiva, o asco frente ao que decide fazer com a própria vida e a da professora Geísa Firmo Gonçalves, às 18h50, do dia 12 de junho de 2000, porque essa escolha ele fez, sim, ajudado pela inépcia não menos matadora da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. O que se vê a seguir, com a execução de Nascimento no carburão da viatura, por asfixia, ratifica esta triste evidência. E vieram e virão outros como ele.


Filme: Última Parada 174
Direção: Bruno Barreto
Ano: 2008
Gêneros: Drama/Suspense/Policial
Nota: 7/10