Os homens que não amavam os Yanomami

Os homens que não amavam os Yanomami

Pedir piedade não vai trazer o peixe fresco de volta, lá onde o rio faz a curva, lá onde o índio chora e a Mãe Natureza não escuta. É ali que o corvo se acocora. Sim, há corvos no Brasil. E uma corja silente, destrutiva, gananciosa, de homens. Agora, todas as outras aves vivas, ociosas, que bebem água-que-passarinho-não-bebe pousam cismadas sobre as copas das árvores centenárias que ainda não tombaram pelas patas férreas dos tratores. Indiozinhos esquálidos, vítimas dos homens detratores, brincam de sobreviver ao jugo dos invasores com objetos feitos de raízes, de gravetos e de sementes, tudo fruto da imaginação de cérebros que ainda não definharam como o músculo e a gordura. A última parte do corpo que morre de fome e de amargura é o cérebro.

Homens brancos de jalecos brancos carregam esqueletos vermelhos nos braços para ser pesados em balanças com precisão cirúrgica. Para a turba generosa que presta assistência humanitária aos combalidos, o sentimento de culpa pesa muito mais do que simplesmente capa e osso. Colônias colossais de plasmódios aproveitam o ensejo do genocídio velado para mergulhar nas profundezas dos plasmas mercuriais do impaludismo recrudescente, por onde circulam em festejos diuturnos, indecentes, de sofrência, suor e febre. A vida ferve para desembocar num mar de azougue por onde navegam exploradores ímpios.

Frente os desmesurados acometimentos, helicópteros das forças armadas despejam mantimentos em voos rasantes sobre as aldeias famintas e as vazantes envenenadas. Índios caquéticos lamentam a má sorte e se indispõem com os deuses da floresta, confundindo as aeronaves com os famigerados urubus. “Ninguém aqui vai morrer pelos olhos. Ainda estamos vivos”, mancomunam os indígenas, na língua deles, no jeito simplório e infeliz deles se indignarem, numa situação para lá de crítica, sem recursos para aluir sozinhos da sombra do terror e da ameaça sifilítica que, sequer, poupa o corpo das crianças. Meninas grávidas desfilam gravidezes horrendas numa taba de mortos-vivos.

Onde antes havia água abundante e potável, vige o caos irremediável: secura inédita, envenenamento contínuo, pântano não palatável. Mulheres da saúde, de sentimento frágil, integrantes das equipes expedicionárias, seguram crianças caquéticas no colo com medo que quebrá-las ao meio durante abalos de choros convulsivos. Nesse ponto da história, até o pranto desbragado será nocivo ao povo macilento. Enfermeiras imberbes cogitam arriar as blusas para amamentar as pequenas criaturas lactentes com tetas secas da não maternidade. Não importa o contexto: o berço da resistência humana arde no ventre fértil da mulher.

Quem antes queria comer, já não quer. Não são raros, os selvagens desencantados imbuídos em desviver. Morre-se mais devagar do que a conta, quando o problema é a inanição, o vício, a bruteza ou o envenenamento intermitente por metal pesado. Falta um pouco mais de leveza e de empatia aos cristãos que, distante do caos amazônico, enchem o prato de uma comida porca que se come fria. Vingança. Negligência. Covardia. Perto dos homens pretos que foram escravizados em séculos passados, o martírio presente, por meio do qual se pressente que o amor desapareceu do mapa cardíaco, não é menos descabido. Sinfonias de gemidos disputam coro com a passarinhada que pia entristecida. Nada plausível explica tal massacre. Temos, então, não resta dúvida, o nosso próprio holocausto para além das agruras do século 20. Reviver o passado é um acinte.

Os silvícolas não disfarçam o medo da morte. Destarte, são gente, não são bichos, como afirmou o Governador de Estado, num estado bestial de indiferença, durante uma entrevista coletiva. Ouvi o diabo ladrar pela boca daquele bandido. Os índios esmeram-se nos subterfúgios precários de subverter a realidade com o adjutório das seivas, das raspas de caule e dos chás alucinógenos. A floresta tem os dias contados. Máquinas pesadas quebram as costelas da mata fechada, abrindo chagas vivas no peito do povo originário, esmagando crias e macacos que se recusam em evoluir na direção dos homens, de acordo com a antiga escala darwiniana.

Salvo ledo engano, Darwin nada previu sobre o retrocesso humano por obra da iniquidade. Nem de longe somos menos pedra do que as pedras refugadas nas esteiras de cascalho dos garimpeiros celerados, donde vez por outra, num lance de pura sorte, num estágio a caminho da morte, nasce o ouro almejado, com brilho formidável, valioso, fatal, que ainda vai matar aquela gente de tanta desumanidade e mal.