Obra-prima com Jesse Eisenberg, que acaba de estrear na Netflix, é um dos filmes mais subestimados da história do cinema

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Decerto o mundo seria uma sucessão de ambientes irrespiráveis se não fossem as diversas manifestações artísticas que o homem, malgrado envolto na hediondez tamanha da própria natureza, conseguiu materializar. É difícil saber o que seria do mundo sem a delicadeza da arte e, principalmente, sem a beleza de sua iluminação nos tempos mais sombrios da história. O britânico Roger Scruton (1944-2020), reconhecia, por óbvio, a importância da violência das máquinas para o desenvolvimento do homem, para que pudesse vencer o desafio da miséria e da fome no rescaldo de tempos de privação e morte, a exemplo do que constatou nos primeiros anos de finda a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Entretanto, Scruton reconhecia que com a sofisticação dos equipamentos e técnicas que aceleraram a produção fabril de modo irreversível e determinante, o mundo fora perdendo muito de sua ingenuidade, sua ternura e, o principal, de sua beleza num processo que se alonga desde então e quiçá jamais cesse.

Foi a partir de argumento tão simples quanto arrebatador que Scruton construiu uma das mais sólidas carreiras na crítica de arte, vindo a ser dos intelectuais que melhor soube definir o que, afinal, representa o expediente artístico e a inventividade humana no mundo. A jornada do homem é marcada desde sempre por guerras, destruição, subjugação de civilizações mais frágeis por povos hegemonicamente superiores, morte, terror; logo, nada mais natural — e necessário — que nos raros momentos em que alguma harmonia se faz presente, esmeremo-nos por achar a arte, a verdadeira arte, onde quer que ela esteja, inclusive (ou principalmente) na feiura, no aviltamento maior a que seres humanos podem ser sujeitados. Por essas e tantas outras é que a arte não pode jamais desobrigar-se da estrita observação de todos os paradigmas canônicos no que concerne ao requinte estético.

Na sua simplicidade, tolamente vista como fácil, Marcel Marceau (1923-2007) deixou um legado duplamente memorável. Em 9 de novembro de 1938, apenas um ano depois de Pablo Picasso (1881-1973) eternizar a barbaridade da Guerra Civil Espanhola (1936-1939) em Guernica (1937), Adolf Hitler (1889-1945) começava a desvelar seu sonho nefasto de dominar a Europa valendo-se da ideologia que colheu do esgoto de sua mente perturbada, no que, como sabemos, lamentavelmente teve êxito, ajudado pela força de sua imagem de político íntegro e sisudo — malgrado artista plástico diletante e de limitado talento ao cabo de uma experiência como garoto de programa eventual —, pela sempiterna carência de líderes orgânicos numa Alemanha que ainda remoía o rancor antissemita com a derrota na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a Grande Guerra, e, por evidente, à convicção com que fazia parecer verdade seu delírio, sortilégio impossível sem a verve meticulosamente calculada e, ainda mais, à capilaridade do discurso, essa uma façanha de Joseph Goebbels (1897-1945), um de seus bruxos mais diabólicos. Ao passo que Hitler colocava suas patas sobre o Ocidente, Marceau subia ao palco de um cabaré decadente de Estrasburgo, nordeste da França, para uma de suas primeiras apresentações num espetáculo solo de teatro mudo, ou mímica. Tinha apenas quinze anos.

Passados dez meses da iniciação de Marceau no caminho desbravado por Lívio Andrônico (280 a.C. – 204 a.C.), o primeiro showman da história, aquele que viria a ser o maior mímico que o mundo já conhecera via-se obrigado a forjar as aptidões de que lançava mão na ribalta para manter-se vivo — e salvar quantos judeus fosse possível. Nascido numa família de ascendência judaica, Marcel Mangel nunca se furtou a combater a tirania daqueles tempos, ainda que nunca lhe tivesse sido necessário pegar em armas. Aludindo a um dos movimentos de maior adesão popular contra as tropas da Alemanha nazista, o venezuelano Jonathan Jakubowicz faz de “Resistência” o libelo contra a opressão de seus ancestrais, retratando a atuação de Marceau como uma verdadeira epifania. Jakubowicz partilha com Marceau a urgência de fuzilar cosmovisões totalitárias com o arsenal que conhece, empreitada que pode não resultar tão bem-sucedida quanto há oito décadas, mas nem por isso dispensa quem que seja da boa guerra.

Mímico acidental no princípio da carreira, Jesse Eisenberg encara Marceau de igual para igual, sem que nunca se perca a dimensão da figura histórica que tem diante de si. Confortável na pele de um mito, Eisenberg transmite a sensação nítida de apreender à perfeição as agruras de um homem do espetáculo abrindo sua estrada com as dificuldades de praxe, a despeito de hoje se travarem batalhas muito menos óbvias. Nesse aspecto, o texto de Jakubowicz aproveita bem as participações de Karl Markovics vivendo Charles, o pai açougueiro, pragmático como todo judeu e descrente das escolhas do imberbe Marcel, que usa um bigode postiço para imitar o Carlitos de Charlie Chaplin (1889-1977). Ainda no primeiro ato, o diretor estabelece uma ótima parceria entre Eisenberg e Markovics com piadas entre infames e saborosas sobre a incipiente jornada de Marceau como um ator de pantomimas — ou palhaço, como prefere Charles — e, naturalmente, a religião dos dois.

A guerra passa como se uma nuvem cor de chumbo pela narrativa de Jakubowicz, representada ao longe, como no diálogo entre Marceau e Klaus Barbie, o oficial de Hitler interpretado com sincera acrimônia pela versatilidade de Matthias Schweighöfer. Eisenberg, Markovics e Schweighöfer, nessa ordem, compõem a síntese de uma das mais belas (e desconhecidas) histórias sobre um homem que conseguiu ser um dos maiores artistas de seu tempo e um herói de guerra cujo vulto a bruma do esquecimento teima em empanar. A arte salva.


Filme: Resistência
Direção: Jonathan Jakubowicz
Ano: 2020
Gêneros: Drama/Comédia/Biografia
Nota: 10/10