Favorito ao Oscar e um dos melhores filmes de 2022, drama argentino está no Prime Video e você não assistiu Divulgação / Prime Video

Favorito ao Oscar e um dos melhores filmes de 2022, drama argentino está no Prime Video e você não assistiu

A política não é nada mais que a tentativa de se estabelecer alguma ordem que reja o caos da natureza humana, que, por seu turno, apenas reflete a biologia — indisciplinada, selvagem, caótica. Sem ela, o civilizadíssimo homem contemporâneo decerto teria regredido outra vez à barbárie da Idade Média (476-1453), ou ainda à violência cândida da Idade da Pedra, em que matávamos “apenas” para nos defender dos inimigos que ameaçavam-nos o território, a pureza das mulheres de nossa tribo ou o desenvolvimento de nossa prole; tão cômodo foi-nos esse modelo que nele permanecemos por quase três milhões de anos, observando a uma distância segura as transformações que, quiçá tardassem, mas haveriam de nos apanhar no contrapé. Como a própria vida, a história é feita de uns poucos avanços e muitos, inúmeros retrocessos, num movimento pendular em que, como bem ensina Marx, seus fatos e personagens mais importantes não se repetem, mas respeitam uma ordem quase invariável, em que despontam uma primeira vez como tragédia — argumento que sempre se pode contestar em alguma medida — e uma segunda sob a capa da farsa mais desabrida, exigindo resposta à altura, não só de agentes públicos ou de quem, à luz da Constituição, lei maior de um país, dispõe de poder para exorcizar fantasmas e remover do armário todos os esqueletos.

A Argentina é sinônimo de vanguarda em muitos assuntos, do modo como seus legisladores enxergam comportamentos sexuais alternativos e tudo quanto orbita em torno desse universo — inclusive a união marital — ao consumo de entorpecentes, passando pela corrupção e desembocando no aborto, e não é exagero inferir que esse arrojo em matérias de onde brotam controvérsias, as mais legítimas, deve-se, em grande medida e observadas algumas particularidades, a uma ousadia em especial. Nunca, em país algum, líderes de ditaduras militares haviam sido obrigados a submeter-se ao escrutínio de promotores públicos e juízes civis, até que, claro, na Argentina o clamor do povo começou a destampar um caldeirão que refervia há pelo menos dois anos, desde que o último autocrata fora defenestrado do trono. À semelhança do Brasil, os anos de chumbo de nossos irmãos ao sudoeste do rio da Prata tiveram início após um período de intensa rebordosa institucional, quando da ascensão de Isabelita Perón, eleita vice-presidente com o marido, Juan Domingo Perón (1895-1974), ao comando do país em virtude da morte do caudilho. Isabelita concluiu seu mandato em 24 de março de 1976, e é bastante provável que, ao gosto da política como a concebia Perón, articulasse a militância e os correligionários do Partido Justicialista, ainda hoje chamados de peronistas, na direção de um autogolpe. Os militares só foram mais rápidos…

Dono de um sobrenome dos mais tradicionais, Santiago Mitre não volta ao governo peronista — como a própria Argentina se recusa a fazê-lo — e decide-se a recontar uma das histórias mais fascinantes da política de seu país. “Argentina, 1985” e hábil em explicar a mística que ronda a cabeça de liberticidas, a despeito de onde se criem, sendo, por óbvio, efusiva no tratamento rigoroso (e justo) de ditadores como Jorge Rafael Videla Redondo (1925-2013), o primeiro de quarto dos graduados oficiais da famigerada Junta Militar que governou o país ao longo de um período marcado por trinta mil mortos e desaparecidos políticos, o que vem a ser o mesmo — número muito mais expressivo que os 434 cadáveres da regime militar brasileiro, que se entendeu por um tempo três vezes mais longo, entre 1964 e 1985. Ainda um menino no momento em que Videla punha suas patas sobre a Argentina, Mitre é bastante didático ao esgrimir um calhamaço de informações, técnicas, inclusive, como a necessidade de se tomar cinco meses apenas para a oitiva de 833 testemunhas, o que faz do julgamento de Videla, Roberto Eduardo Viola (1924-1994), Leopoldo Galtieri (1926-2003) e Reynaldo Bignone (1928-2018) um dos mais extenuantes de que se tem notícia — o de Adolf Eichmann (1906-1962), um dos braços-direitos de Hitler, se entendeu por oito meses, entre abril e dezembro de 1961. Ironicamente, Eichmann conseguira viver em relativo sossego por década e meia, como mostra Chris Weitz em “Operação Final” (2018), numa estância nos arredores de Buenos Aires.

Ricardo Darín, o herói por excelência do cinema argentino, encarna Julio Cesar Strassera (1933-2015) com a dignidade de sempre, pontuando irretocavelmente a seriedade do homem que mudou a história da Argentina com os ditos espirituosos do texto de Mitre e Mariano Llinás. Não é uma solução, tampouco uma rima, mas passadas quase quatro décadas, os argentinos seguem deixando-se encantar por serpentes bocudas e raposas de bigode grosso, expoentes do mesmo populismo rastaquera que nos humilha aqui nos tristes trópicos. Até novamente se cansarem.


Filme: Argentina, 1985
Direção: Santiago Mitre
Ano: 2022
Gêneros: Drama/Biografia
Nota: 9/10