Baseado em livro Joyce Carol Oates, filme na Netflix, fará você conversar com a TV e seus olhos pegarem fogo Divulgação / Eagle Films

Baseado em livro Joyce Carol Oates, filme na Netflix, fará você conversar com a TV e seus olhos pegarem fogo

Desde o princípio dos tempos, a humanidade declara sua aflição quanto a encontrar entre homens comuns aqueles que emulem uma divindade impossível e flutuem sobre o banal que coroa os demais, saiam do ordinário do mundo como ele se nos revela e extrapolem sua humana condição, revestindo-se de uma mística sobrenatural qualquer, que o faça transitar com desembaraço pelo plano da utopia e do sonho. Os anos se acumulam uns sobre os outros, como peças de um brinquedo de montar, encaixando-se de forma razoavelmente orgânica, mas em se alongando o processo, tornam-se gritantes as diferenças de cores, de texturas, formatos e composição de cada um desses elementos, apontando para a conclusão óbvia de que o existir, a depender do momento em que se acham os indivíduos, não prescinde jamais de sua natureza heterogênea, pendendo para uma tendência de comportamento ou o seu contrário ao sabor das circunstâncias, sendo da exclusiva competência de mulheres e homens a condução das questões que os seguirão atormentando pela vida afora.

O homem está sempre à procura de uma luz, mesmo que difusa, que lhe permita alcançar a sabedoria instintiva que o ampara para, afinal, ter pistas efetivamente palpáveis quanto a atingir o tão buscado autoconhecimento, alicerce para que vá erigindo as fortalezas que mantêm sua alma a salvo da vileza do mundo. Esse primeiro estágio, moroso e doído, é só um preparo breve para que o homem chegue a uma fase ainda mais importante, a que aponta para sua autoafirmação em si. A sensação de fracasso é a peçonha mais corrosiva para o espírito da criatura humana, pedante e cheia de suas misérias incuráveis. Propor-se um desafio e abortar a missão, por mais imperiosa que seja a causa da desistência, fede a covardia, o exato oposto do que a vida, em suma, representa. Nesses momentos em que a fraqueza arrebata, quase absoluta em suas potências gradativas de aniquilação, livra-nos precisamente a consciência de que há aqueles propósitos para nós tão vitais que, por mais que quiséssemos, nunca poderíamos deixá-los dormitando num escaninho da mente: eles acabariam por se impor de algum jeito — encaminhados, claro, por esses paladinos do bom, do belo e do justo que, como cometas, atravessam o firmamento sem medida da perdição humana de tempos em tempos.

Ao longo de quatro décadas de carreira, Nicolas Cage foi incorporando essa aura de bom-mocismo muito bem dosado com a violência que aquele semblante doce esconde tão bem. Dificilmente outro ator personificaria com tanta força o propósito de Johnny Martin em “Uma História de Vingança”, ainda mais claro no título original, que junta a ideia de reparação o intuito de contar uma história de amor, sentimento que brota em John Dromoor, o detetive interpretado por Cage, e oscila entre as duas mulheres que entram em sua vida, mãe e filha, de modos diversos e complementares. O roteiro de John Mankiewicz exacerba o lado nobre de seu protagonista, relegando a um providencial segundo plano suas tragédias, que se desnudam, com muita parcimônia, a partir do segundo ato, quando Dromoor consegue romper o gelo que impõe a si mesmo e, literalmente, toma as dores de Teena Maguire, vivida por Anna Hutchison, vítima do crime hediondo que sustenta o enredo, numa orgia etílica típica do Quatro de Julho, e, Bethie, de Tabitha Bateman, a filha de doze anos que assiste a tudo, petrificada.

O texto de Mankiewicz consegue ser muito fiel ao romance de Joyce Carol Oates, publicado em 2003, em que o filme de Martin se baseia com toda a liberdade, ao mesmo tempo em que resgata bons lances da jornada de Cage no cinema, a exemplo de seu Rick Santoro em “Olhos de Serpente” (1998), de Brian de Palma. O roteirista e o diretor são hábeis de extrair da narrativa de Oates muito do que no próprio livro se obnubila com facilidade, e nesse particular a entrada em cena de Don Johnson como Jay Kirkpatrick, o advogado que defende os tipos que investiram contra Teena, momento que avultam discussões sobre ética (e, principalmente, a falta dela) no meio jurídico se constitui numa das melhores qualidades de uma trama nada presunçosa, mas sofisticada e cínica, de um cinismo bem romântico. Bem à Nicolas Cage.


Filme: Uma História de Vingança
Direção: Johnny Martin
Ano: 2017
Gêneros: Ação/Thriller
Nota: 8/10