Último dia para assistir na Netflix ao filme com Ana de Armas, que você não conseguirá parar de ver Divulgação / Netflix

Último dia para assistir na Netflix ao filme com Ana de Armas, que você não conseguirá parar de ver

A loucura sempre permeou a história. O homem vai perdendo a razão aos poucos, incapaz frente aos muitos desafios que a vida lhe impõe, ou o desatino o colhe de uma vez, consequência de muitos anos de uma existência fracassada.

Depois desse contato com o que há de mais profundo, com o que há de mais obscuro e assustador em nossa própria essência, aumentam as chances de nos perdermos na complexidade maravilhosa e sufocante de nossa humana — e, por óbvio, restrita — condição, e em paralelo a essa sequência de procedimentos ora prosaicos, ora tão intrincados que nós mesmos não os podemos absorver, com início muito bem definido, mas sem fim, botamos no chão o delgado muro que separa o real da fantasia e se nos deslinda um território que, ao passo que é feito de magia e de lirismo singelo, permite que aflore o horror do desvario em estado bruto.

A vida adquire o verniz e a substância de um sonho macabro, pesadelo mais e mais realista em que as memórias que nos torturam, as representações da infelicidade nossa de cada dia abandonam o universo etéreo das conjeturas e as lembranças perversas de um passado violentamente tétrico agarram-se ao muito pouco que nos sobra de razão, tesouro de valor ainda mais inestimável frente a alucinações de toda sorte que espocam diante de nossos olhos.

Há beleza em muito mais do que pode supor nossa vã filosofia, e isso não deixa de ser um risco. O homem é capaz de vislumbrar encanto onde tudo quanto existe é uma aparência de harmonia, que não tolera uma análise mais detida, que se desmancha ao toque mais ríspido. A fantasia é necessária mesmo na vida do mais comum dos homens. Todos temos o direito de erguer os castelos de areia que adornamos com ilusões as mais vãs, de perder-nos no oceano tépido e lúgubre dos pensamentos que arrebentam contra o porto seguro da razão, até que a frequência das ondas recrudesce a um só golpe, e a insânia cobre tudo.

Um homem jovem tenta ganhar a vida honestamente, como tantos outros nos Estados Unidos, paraíso das oportunidades e purgatório do lumpemproletariado, e até aí, tudo segue seu curso natural. As complicações tornam-se evidentes, entretanto, quando esse garoto, pouco mais que um menino, passa a ser alvo do escrutínio invencível de um investigador de polícia devido ao transtorno mental de que padece, condição com que já se habituara, mas de que, por óbvio, sempre emana um sofrimento contra o qual não sabe lidar. Michael Cristofer aposta todas as fichas no desempenho de seu ator principal em “O Recepcionista”, história sobre uma loucura pouco óbvia, mas sempre insinuante, que acaba por definir os rumos de uma vida que se fecha em si mesma.

Tye Sheridan encarna seu personagem de modo tão irretocável que nem dá muita vontade de falar dos demais tipos do roteiro de Cristofer, que parecem entrar na história apenas que se justifique ainda mais seu estrelato. Bart Bromley é o típico americano tranquilo. Sem consciência de classe, sem aspirações, mantendo vivos em algum lugar de seu espírito fragmentado apenas os sonhos possíveis, Bart leva a vida da forma que consegue, dando expediente no posto de porteiro da noite, como se lê no título original.

O diretor abre a massa de sua narrativa aos poucos e lá faz caber com cautela o argumento central: Sheridan empresta a esse rapaz um tanto amargurado, de uma melancolia orgânica, que ele mesmo nem sente mais e que os outros fingem não perceber, um olhar apagado, um jeito cabisbaixo diante da vida, que até pode ser fruto do pronunciado grau de autismo com que tem de conviver, mas não só.

Cristofer desenvolve bem o expediente de que Bart lança mão para vencer a inabilidade social — instalar câmeras nos quartos do hotel em que trabalha — de modo a dar-lhe a aura de perversão que o personagem exige. Nesse campo, Ana de Armas entra como Andrea Rivera, uma femme fatale à primeira vista angelical, porém igualmente cheia de seus segredos impublicáveis. O que recai sobre um homem apaixonado (e não correspondido) com muito mais peso que a ameaça da cadeia ou do hospício.


Filme: O Recepcionista
Direção: Michael Cristofer
Ano: 2020
Gêneros: Drama/Crime
Nota: 8/10