Ignorada pela crítica, obra-prima com Richard Gere acaba de estrear na Netflix e vai te intrigar por semanas Divulgação / IFC Films

Ignorada pela crítica, obra-prima com Richard Gere acaba de estrear na Netflix e vai te intrigar por semanas

Viver é um desafio curioso. Ainda que haja mil situações que mais parecem testes a nossa resistência, a vida se nos apresenta na exata proporção em que cada um é capaz de suportá-la, mas dispensa certezas, desfaz dos planos mais ordinários com que nos atrevemos a sonhar, atropela com violência tudo quanto podemos julgar precioso, impondo-nos a natureza sobranceira que paira sobre tudo quanto existe, de luz e de sombra, de salvífico e de nefasto, senhora de tudo o que existe, aturdindo-nos mesmo no que temos de mais íntimo, naqueles detalhes de nós mesmos que julgávamos conhecer tão bem, reafirmando estar sempre muito certa do domínio que exerce sobre todas as suas criaturas. É necessário algum empenho a fim de se encontrar o motivo de tantas obscuras intenções, o porquê de nos lançar em abismos tão fundos e tão habitados dos monstros que nós mesmos embalamos, quando não seca em nós a crença de que a vida é, antes de qualquer outra coisa, sonho. Mas sonhos também soem se revelar sob uma forma monstruosa, acrescentando mais uma peça quase desprezível no infinito mosaico de horror da existência.

À medida que se vive e se ganha alguma intimidade com a vida, nota-se que o maior prazer dessa entidade divina e diabólica que mantém-nos aqui por um tempo muito curto ou longo demais é nos submeter a seus caprichos, cujo genuíno pretexto ninguém no mundo jamais pode alegar conhecer. A vida passa, felizmente — só por essa razão podemos ter algum controle sobre seus imprevisíveis ardis, e pensar assim não deixa de ser um grande risco —, e vai largando um rastro de destruição irrigado por aquela corrente de lágrimas que vertemos, tantas que salgam o mar, como canta o poeta. O pranto convulso, de choro muitas vezes exagerado, mas também sinceramente penoso, expurgado com uma dor que só em nós dói (e como dói!), cura ao passo que abre feridas mais profundas, a serem tratadas num outro instante de novas mágoas, principiando mais um ciclo de bombas e estilhaços, até que o espírito alquebrado acusa o golpe.

Jon Avnet fala de sonhos como poucos. Existe no trabalho do diretor um ímpeto qualquer por tentar conhecer os becos escuros da mente humana, identificando possíveis explicações para os desvios que insistimos em tomar. Em “Três Cristos”, Avnet mantém uma espécie de compromisso com seu público quanto a de esmiuçar por ele o que seus personagens têm a esconder, colocando tudo em pratos limpos, sem meias verdades, como nos outros trabalhos que o fizeram internacionalmente famoso, a exemplo do comovente “Tomates Verdes Fritos” (1991), longe de ser unanimidade. Num roteiro que prima pela emoção, pela beleza e pela abordagem múltipla, complexa, dos tipos que retrata, o diretor e Eric Nazarian absorvem um lado menos evidente da loucura, quiçá demasiado romântico, mas nunca inconsequente.

Baseados em “Os Três Cristos de Ypsilanti” (1964), uma das bíblias da nova psicoterapia, com a licença do trocadilho, Avnet e Nazarian absorvem o espírito libertário — insubordinado até —, de seu autor, dotado da capacidade de ver além da superfície. Essa qualidade, rara, pode parecer óbvia, mormente num homem que opta por viver de se enfronhar no cérebro dos outros, decisão que não se leva a cabo impunemente. A cidade do sul do Michigan a que o psicólogo social polonês-americano Milton Rokeach (1918-1988) faz menção no título de seu livro abrigou uma das experiências mais luminosas (e controversas) da psiquiatria. Em 1959, três homens que se diziam ninguém menos que Jesus Cristo passaram a frequentar a mesma sessão de psicanálise num tempo em que doenças mentais eram provisoriamente contidas com camisa-de-força e eletrochoque, Rokeach desbravou uma senda tortuosa, que o passar dos anos indica não ter fim, mas cujo progresso já se pode mensurar hoje, transcorridas mais de seis décadas.

O trio de esquizofrênicos a que o filme de Avnet alude — e é curioso que o próprio Rokeach, num ato falho, se inclua como o quarto “Cristo” — responde pelo interesse de qualquer um sobre a história que, a propósito, não tem nenhuma pretensão didática. O Joseph de Peter Dinklage; Leon, interpretado por Walton Goggins; Clyde, vivido por Bradley Whitford; e Richard Gere como Alan Stone, o alter ego de Rokeach, numa de suas melhores atuações, capturam a atenção de quem assiste até o desfecho, momento em que se percebe por que Stone gosta tanto do que faz.


Filme: Três Cristos
Direção: Jon Avnet
Ano: 2017
Gênero: Drama
Nota: 10