Suspense na Netflix vai te perturbar até a alma e te impactar até os ossos Divulgação / Universal Studios

Suspense na Netflix vai te perturbar até a alma e te impactar até os ossos

Quanto mais se alonga nossa experiência no mundo, mais se procura encontrar alguma razão para se fugir da vida, como se as incessantes alienações que se lançam em desespero diante de nós concorressem todas para aprisionar-nos em sua própria loucura, quiçá a aprendizado mais parecido com a morte, por fazer-nos ter só um vago entendimento do que sucede conosco e com os que nos rodeiam, e mesmo assim de forma malignamente torta. Pessoa alguma é capaz, no entanto, de cruzar a vida sem seus quinze minutos de loucura, sob pena de sucumbir ao primeiro tropeço — e hão de ser vários ao longo do caminho, por mais curto que ele se apresente. Muito do que o homem sonha, boa parte da natureza de sua sandice, tacanha ou grandiloquente, relaciona-se diretamente com suas lembranças mais íntimas e, estas, por evidente, estão sempre muito perto de tudo quanto o espírito nos levaria a ser, malgrado o corpo jamais haja tido a menor intenção de o reafirmar. Ter por natural essa inconstância do destino, até que ele resolva que é hora de dar o jogo por findo, embaralhando as cartas mais uma vez, é uma sabedoria, a que se chega não sem renúncias as mais sentidas.

Depois desse contato com o que há de mais profundo, com o que há de mais obscuro e assustador em nossa própria essência, aumentam as chances de nos perdermos na complexidade maravilhosa e sufocante de nossa humana — e, por óbvio, restrita — condição, e em paralelo a esse dispendioso processo, contínuo, lento, sem fim, derrubarmos a meia parede que separa o real da fantasia, um território que, ao passo que é feito de magia e de lirismo singelo, permite que floresça o desvario em estado bruto. Um agente do FBI bronzeado, solar, feliz no casamento e cheio das falsas certezas das pessoas sem grandes agonias, entra em rota de violenta colisão com um psicopata frio, hábil em calcular palavras e mascarar emoções, irremediavelmente só em sua megalomania. O jogo de gato e rato proposto por Brett Ratner em “Dragão Vermelho” perpassa justamente as personalidades opostas desses dois homens, ressaltando o que um detesta no outro, mas fazendo caso de lhes botar na boca o texto contundente que esgrimem ao longo de mais de duas horas.

Os preciosismos do roteiro de Ted Tally, baseado no livro de Thomas Harris, de 1981, são muito bem aproveitados por Ratner, que se vale de uma câmera aérea sobranceira, que vira a cena como uma rainha esperando o desfile de seu séquito — e ele acontece. O mestre de cerimônia dessa solenidade é Anthony Hopkins, que usa de todo o physique du rôle de que dispõe a favor de Hannibal Lecter; gênio em seu ofício, Hopkins não hesita em lançar o fogo-fátuo de seus grandes olhos azuis sobre um pobre músico durante um recital. Lecter vai surgindo paulatinamente, como um espectro, no centro do quadro, seu rosto frio voltado para a justa direção da audiência, como se nos imprecasse um ror de maldições.

O Will Graham de Edward Norton aporta à trama com a nobilíssima missão de contrabalançar a vilania algo caricata do antagonista — esses dois tipos, em verdade, sofrem de pronunciadas limitações de composição, mas tanto Hopkins como o colega mais novo, dado o domínio técnico da interpretação, têm o condão de torcer seus papéis até que deles sobre apenas o que a história demanda. Nesse particular, Hopkins empresta a seu vilão a complexidade de um imigrante lituano que fez a América, tornou-se um psiquiatra de sucesso, um homem de fino trato, mas não foi capaz de superar seu maior adversário: o instinto, a atração pela morte. Mas é o único habilitado a ajudar Graham a esclarecer uma nova cadeia de homicídios grotescos perpetrados por um certo Francis Dolarhyde, ou a Fada do Dente, participação soturna e luminosa de Ralph Fiennes.


Filme: Dragão Vermelho
Direção: Brett Ratner
Ano: 2002
Gêneros: Thriller/Suspense/Terror/Drama
Nota: 9/10