Filme policial inteligente e rápido na Netflix vai tirar seu fôlego Divulgação / Open Road Films

Filme policial inteligente e rápido na Netflix vai tirar seu fôlego

A vida é caótica. A vida em sociedade tenta domar essa propensão natural à ruína de tudo quanto se relaciona ao gênero humano, esse ímpeto voraz do homem, sempre disposto a lançar-se a abismos dos quais não sairá sem boa medida de sacrifício, mas só o que consegue é transmitir uma muito pálida sensação de que existe em algum plano ainda por ser detectado um expediente qualquer que ninguém jamais tentou, justamente a solução milagrosa que nos há de livrar a todos das garras da fera da maldade, que fazemos questão de afiar dia a dia. Desenvolveram-se métodos, inventaram-se dispositivos e instituíram-se órgãos capazes, ao menos em tese, de deixar claro que “ninguém está acima da lei”, ou “todo mundo têm os mesmos direitos e obrigações”, ou ainda que “se o bote afunda, todos se afogam”. A verdade, translúcida e inescapável, é que haverá quem tenha poder o bastante para subir a alturas muito superiores à do ordenamento jurídico aplicado à infinita parcela de gente comum que faz girar a roda do mundo — ou para dar um jeito de rebaixá-lo à sua indignidade, da mesma forma que iguais mais iguais que o resto terminam por se destacar e que a maré se apresenta um tanto plácida demais a quem tem braços mais vigorosos e pernas menos relutantes.

A polícia foi idealizada como a ferramenta de que o Estado lançaria mão a fim de conter a natureza rebelde do homem, mas, como todos sabemos desde sempre, também a polícia comete seus deslizes. A chance de se atestar que aqueles que têm a obrigação moral e de ofício de resguardar a sociedade se corromperam, encantados por promessas vãs de crescimento na própria corporação, influência junto a seus superiores e, claro, dinheiro, muito dinheiro, deixou de ser mera hipótese para se incorporar ao cotidiano dos povos faz tempo. É cada vez mais comum que nos deparemos com histórias de homens e mulheres da lei que renunciaram a sua função de separar o joio do trigo e preferiram tornar-se parte de uma estrutura degenerada, repleta de vícios insanáveis, rumando a passos largos para a podridão irreversível. Quanto mais circunstâncias assim teimam em se suceder, menos esperança sobra no fundo da caixa, e haja otimismo para supor que um dia, quem sabe, alguma mudança, por mínima que seja, saia do papel.

Num tempo em que qualquer filme sobre qualquer assunto não tem pejo nenhum de abusar da tecnologia com compensação de lacunas cognitivo-narrativas do enredo, a honesta despretensão de “Crimes na Madrugada” chega a ser comovente. O alemão Baran bo Odar saca de conceitos assustadoramente prosaicos a fim de dar forma ao roteiro de Andrea Berloff protagonizado por um policial experiente, com forte inclinação para situações perigosas e meio workaholic — além de incuravelmente corrupto —, o que redunda numa história ágil, que foge do psicologismo e da sociologia de botequim, preferindo caminhar pari passu com a realidade, triste, que escolhe destrinchar. Cinco anos depois da estreia do longa, Odar é muito mais conhecido pela série de suspense e ficção científica “1899” — cujo mote está sendo alvo de acusações de plágio que ainda hão de render pano para manga e milhões de dólares em honorários de advogados —; no que respeita ao filme de 2017, o diretor saiu-se galhardamente, e esse seu trabalho continua a ser lembrado como referência quando o assunto é colocar o dedo nas muitas feridas da contemporaneidade sem lero-lero.

Berloff inspira-se no francês “Nuit Blanche” (2011), de Frédéric Jardin, para narrar a vida nada honrosa de um anti-herói que exala cinismo por todos os poros. Metido até a medula com o descaminho de entorpecentes apreendidos, o investigador Vincent Downs, interpretado por Jamie Foxx, vai se esquivando das investidas dos chefões do submundo de Las Vegas, até que dá um passo maior que a perna e acaba com a carreira e a própria vida a prêmio, o que ele mesmo já esperava que acontecesse mais cedo ou mais tarde. O duro golpe no que lhe sobrara de hombridade é saber que os gângsteres liderados por Rob Novak, de Scoot McNairy, resolveram se vingar de sua deslealdade e ganância sequestrando Thomas, o filho de Downs vivido por Octavius ​​J. Johnson. Tudo a que se assiste daí até o desfecho são variações de um mesmo tema, em que Odar leva seu filme por discussões ora em defesa da polícia, ora desabridamente incendiárias, quase levianas, em que, como poderia se esperar, ninguém é merecedor do título de homem do ano. Talvez só Jennifer Bryant, a detetive caxias e estereotipadíssima de uma Michelle Monaghan meio canastrona.


Filme: Crimes na Madrugada
Direção: Baran bo Odar
Ano: 2017
Gêneros: Thriller/Ação
Nota: 8/10