Novo filme que acaba de estrear na Netflix te convida a abraçar a causa anarquista Quim Vives / Netflix

Novo filme que acaba de estrear na Netflix te convida a abraçar a causa anarquista

Viver em sociedade acaba sendo um contumaz enfrentamento entre o bem e o mal, raciocínio perigosamente maniqueísta, eivado de reducionismo e preconceitos de toda ordem, que, não obstante, mira a conclusão, óbvia e lamentável, de que o segundo quase sempre triunfa sobre o primeiro. Fazer um esforço genuíno para compreender o outro, desarmadamente, sem receio de ser tido por fraco, regalar o que sofre com um olhar de bondade que seja, ceder ao impulso esmagador de colocar sua própria opinião acima dos fatos e da vontade de dominar o mundo exige de nós tamanho sacrifício que é como se tivéssemos de embarcar num trem mágico com destino a uma dimensão paralela, precisamente o lugar onde se desenrola aquela vida, estranho território no qual circunstâncias para nós as mais absurdas são o que pode haver de mais prosaico. Em momentos que tais é que se percebe o quão complexa pode ser a vida em comum, com mulheres e homens sempre envoltos em centenas de questões e milhares de problemas de que raramente se livram de todo, ou por não conseguirem ou por não estarem dispostos a procurar o motivo de tanta angústia, de tanto desespero — que não raro escondem-se-lhes nos meandros mais sinistros do espírito.

Filha da Revolução Francesa, cujo fulgor se espalhou pelo mundo entre 1789 e 1799, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, publicada em 1948, foi um marco no entendimento dos anseios da alma humana. À medida que se ia fazendo conhecer, povos do mundo inteiro se conscientizaram quanto à necessidade do respeito às diferenças, visto até então como mero capricho, como um ato de cortesia que os donos do poder nas sociedades ao redor do mundo prestavam aos desdentados. No bojo das questões mais complexas a tocar o assunto, por óbvio, surgiram temas verdadeiramente delicados, relacionados a ditos hábitos e costumes que integrariam uma certa tradição, tudo isso atravessado pela política, atividade exercida por gente sem pejo de enfiar a mão em cumbucas estreitas, que nunca se excede e jamais se envergonha, o que não é necessariamente fácil, nem para os bagres nem para os tubarões. Javier Ruíz Caldera aposta numa das grandes carências do gênero humano em seu novo filme. Num tempo em que as utopias parecem irremissivelmente mortas, o espanhol lança “Um Homem de Ação”, relato com os dois bem fincados na hagiografia de um dos ícones do movimento anarquista na Espanha da segunda metade do século 20, mas que não deixa de ser o registro importante acerca de um tempo especialmente difícil na história daquele país.

Que Lucio Urtubia (1931-2020) foi um sonhador ninguém pode questionar. O roteiro de Patxi Amezcua relembra passagens verdadeiramente cinematográficas da vida de Urtubia, desde a saída da Espanha em plena vigência da ditadura do caudilho Francisco Franco (1892-1975), em 1962, quando aportou em Paris, a um inusitado exílio em Tacacoma, na Bolívia, depois de ter tido de acertar contas com o FBI. Naturalmente, a vida do menino pobre e idealista, que deixou a terra natal por motivos políticos muito antes de sentir-se impelido a o fazer, aprendeu o ofício de pedreiro, enamorou-se da causa operária, viajou por cada uma das infinitas rodovias das perdidas ilusões, amou, riu e chorou, não foi um mar de rosas e Caldera consegue traduzir em imagens que transbordam lirismo a vasta pesquisa de Amezcua sobre um personagem quase invisível, só conhecido entre iniciados e pelos poetas malditos, daquele gênero que picha frases tolamente românticas em louvor de Mikhail Bakunin (1814-1876) nos viadutos das megalópoles coalhadas da gente humilde que mimetiza a fuligem dos automóveis e morre das feridas criadas pela pobreza, sem que ninguém saia às ruas para dizer que suas vidas também importam. Nesse departamento, as cenas em que o diretor mostra Urtubia, interpretação mediúnica de Juan José Ballesta, assaltando um banco com os camaradas — porque anarquistas têm aversão a dinheiro, claro, mas precisam comer, pagar o aluguel, comprar escopetas novas, viver, enfim —, são dotadas de realismo o bastante para transportar o público para aqueles confusos anos 1960, em Europa, França e Bahia. Detalhes quase imperceptíveis, nesse mesmo tomo, como o péssimo francês de Urtubia, incapaz de mandar os clientes do banco que está assaltando se pôr ao chão sem que a mensagem se perca em meio ao burburinho do saguão, prestam-se a um delicado tropo do quão enfeitiçado estava pelo brilho falso da causa que defendia. Urtubia não convencia ninguém sem um bom ferro na mão.

Seu envolvimento com Anne, de Liah O’Prey, a francesa com quem se casara e tivera Juliette, resta meio negligenciado pelos trechos desabridamente hagiográficos acerca da figura de Urtubia, que a exemplo de Rousseau, outro grande humanista, abandonou a família porque não suportava a injustiça social. Trocando em miúdos, “Um Homem de Ação” é a história de um homem dado a paixões, que mordia mais do que podia engolir, mas pragmático quando convinha. Ao contrário de Che Guevara, com quem chegara a se encontrar num lugar, digamos, inusitado, esse paladino da massa indefesa viveu quase noventa anos. E, pasmem, nunca se arrependeu de nada.


Filme: Um Homem de Ação
Direção: Javier Ruíz Caldera
Ano: 2022
Gênero: Drama
Nota: 8/10