Poderoso e feroz, novo filme da Netflix vai te envolver completamente por 134 minutos Laura Radford / Netflix

Poderoso e feroz, novo filme da Netflix vai te envolver completamente por 134 minutos

Sonhos são das poucas manifestações verdadeiramente genuínas no espírito do homem, das quais nunca se afasta — pelo menos não sem um bom travo de frustração, ao cabo de alguma relutância —, sem as quais não consegue sentir-se pleno e que se mantêm cada vez mais vigorosas a despeito do passar do tempo. Essa natureza indestrutível dos sonhos, como se revestidos de uma substância mágica que os fizesse à prova do mais duro choque, ao passo que também preservassem a leveza característica que os define, emana das nossas memórias, cristaliza-se com nossos traumas, recrudesce sempre que precisamos de um alento qualquer diante da brutalidade da vida. É nos sonhos que nos abastecemos da força necessária para seguir por essa estrada não se sabe se comprida ou muito breve, mas que acaba sempre no mesmo ponto, por mais apaixonados que sejam nossos clamores. De quando em quando, assalta-nos o gosto por reivindicar direitos que nem sabemos se nos assistem, e sobejam as queixas sobre tudo e nada, que apenas os sonhos, claro, têm o condão de abrandar.

Os anseios de conquista do homem, tanto os mais palpáveis como os flagrantemente quiméricos, podem torná-lo mais forte ou empurrá-lo para um oceano de ilusões, de onde pode não voltar. Ninguém sabe muito bem de que maneira acaba seu próprio caminho, porém é perfeitamente factível determinar de que forma será percorrido, e antes, se o merece. Leva-se muito tempo até que se tenha suficientemente clara a necessidade de um sonho — às vezes a vida toda —, mas no momento em que restam dissipadas as maiores névoas de vacilação, é quase impossível suportar qualquer argumento que saiba a razão, por mais convincente que pareça: passamos por cima de nossos brios mil vezes se preciso, desde que se nos anuncie a mínima chance dos planos acalentados desde eras imemoriais darem certo. Sally El Hosaini faz de “As Nadadoras” (2022) a epopeia real de duas heroínas à procura de um lugar no mundo onde possam alcançar o objetivo que as une, até que a vida, como costuma acontecer, embaralha as cartas de modo definitivo.

Sara e Yusra Mardini, duas refugiadas da guerra síria, resolvem embarcar rumo ao maior sonho de suas vidas, sem figura de linguagem. Junto com Jack Thorne, El Hosaini conta a história verídica das irmãs Mardini, que em 2015 resolvem deixar o subúrbio de Damasco visando a participar dos jogos olímpicos no Rio de Janeiro, no ano seguinte. Nadadoras profissionais há algum tempo, treinadas desde tenra idade pelo pai, Ezzat, de Ali Suliman, as personagens de Manal e Nathalie Issa — que dividem o protagonismo do roteiro de Thorne e El Hosaini até mais da metade dos 135 minutos de filme, quando a Yusra de Nathalie encampa uma guinada corajosa na trama e, por evidente, na própria vida —, são mostradas nas circunstâncias mais difíceis, da caminhada extenuante pela divisa entre a Síria e a Turquia, dependendo dos famigerados coiotes, à travessia do mar Mediterrâneo rumo à ilha de Lesbos, na Grécia, de onde, mais uma vez, partem em direção a Alemanha.

A chegada a Berlim, ponto alto da narrativa, é marcada por bem conduzidas tomadas de injúria racial, do fantasma da mendicância sempre à espreita e uma tentativa de estupro, sem contar, claro, a infernal viagem a bordo de um superlotado bote de lona, que resiste por pouco. O encontro com o treinador Sven, participação decisiva de Matthias Schweighöfer, encaminha a história para um desfecho emocionante, de que se apreende uma separação algo traumática das irmãs Mardini, cada uma forte a seu modo, como sugere a trilha sonora cheia de hits-chiclete.


Filme: As Nadadoras
Direção: Sally El Hosaini
Ano: 2022
Gêneros: Drama/Esporte
Nota: 8/10