A bizarro, lindo, excêntrico e perturbador, o filme na Netflix que você não conseguirá esquecer Edu Casanova / Netflix

A bizarro, lindo, excêntrico e perturbador, o filme na Netflix que você não conseguirá esquecer

O crítico de arte britânico Roger Scruton (1944-2020) foi um ferrenho defensor da beleza, na pintura, na escultura, nas páginas dos livros, no teatro, no cinema, mas também argumentava que a beleza tinha uma importância tão sua, tão imprescindível para que pudéssemos suportar a vida como ela é, que deveria pautar todo e qualquer comportamento humano, pautando sempre novas apreensões em torno da simplicidade essencial do belo. Scruton sabia, contudo, que a boa estética não é exatamente algo que se manifesta de forma orgânica no cotidiano das pessoas. Há que se seguir alguns paradigmas canônicos no que concerne ao requinte da harmonia plástica em produtos culturais, precisamente para que não restasse perdida a genuína ideia de obra de arte, muito distinta de como o entendem marqueteiros que se valem de uma promessa de oxigenação artística para, espertamente, transformar lixo — lixo brilhante e colorido, é verdade, mas lixo assim mesmo — em dinheiro, muito dinheiro.

Beleza e feiura são conceitos estritamente rígidos em arte, não cabendo muitas deambulações quanto a que parâmetros foram adotados para se classificar um trabalho artístico. Isso nada tem a ver com uma visão edulcorada da vida, como se só fosse arte — e, por conseguinte, belo — o que toca a assuntos amenos. Pelo contrário; é justamente pelo jeito como se abordam temas ditos sérios, graves, que a visão de mundo de um artista plástico, escritor, dramaturgo ou cineasta deixa de ser apenas uma vertente de sua intimidade tornada pública para penetrar nos intrincados meandros da cultura pop, sem abdicar de sua erudição em nenhuma hipótese. Eduardo Casanova parece inclinado a dar sua contribuição sincera ao eterno e sempre inadiável debate acerca da relevância da arte atrelada a valores estéticos, com a intenção de defender um ponto de vista límpido quanto à necessidade da beleza e de seu oposto na arte para colocar à prova a sisudez monolítica e os valores deturpados que o estabelecido propaga, ora pela covardia da inércia, ora pelo conforto do oportunismo. “Peles” (2017) é um festival de tipos grotescos, saborosos pelo que querem representar de legitimamente controverso, discussão espinhosa que não raro degringola em intolerância e se estende pelos anos, dificultada pelo preconceito e pela indigência intelectual.

Muito da narrativa de “Peles” remete o espectador a doidice de Almodóvar, mas Casanova logo dá a cara a bater e assume sua responsabilidade intransferível sobre o que se vai falar. O diretor-roteirista escolhe abrir seu filme já com uma crítica a exploração de corpos em duas frentes principais, que podem ramificar-se por várias outras: uma cafetina idosa apresenta a Simón, um potencial cliente, fotos das garotas de seu plantel, ressaltando que muitas são menores de idade, crianças. O personagem de Antonio Durán se decide por Laura, uma menina de onze anos, indefesa também por ter os olhos encobertos pelas pálpebras. Algumas cenas depois, Casanova volta a dispor da figura dessa garota, agora uma mulher, elaborando a primeira grande metáfora do enredo, relacionadas aos olhos de Laura, que só olham para dentro, fechados em si mesmos. Presença constante no cinema espanhol, Macarena Gómez assume a personagem e faz dela uma grata surpresa, mormente na contracena com Itziar Castro, que surge como uma possível vilã, conforme se denota de seu comportamento diante de uma garota com uma anomalia muito sui generis, mas não demora a também apresentar seus complexos e uma rebeldia tácita contra seu estado, igualmente abominável junto às pessoas consideradas normais.


Filme: Peles
Direção: Eduardo Casanova
Ano: 2017
Gênero: Drama
Nota: 8/10