Meus heróis morreram de artrose

Meus heróis morreram de artrose

A esperança é uma espécie de fanatismo. Do tipo causa perdida. Eu não sei como perder e não sei pelo que esperar. Portanto, nada quero de mais daquele que transpira e que se insinua pelas plagas mundanas. A morte é um fenômeno natural da matéria animal humana que muito me inspira. Quase sempre da pior maneira, quer dizer, a criar um misto de estupefação e raiva. Sinto uma inelástica ojeriza pelos marmanjos imaturos como eu. Não sinta pena. Não sinta nada. Saia da minha frente com as suas lascas de consolo. Tudo o que você disser vai me incendiar por dentro e me deixar um pouco mais humilhado. Eu sei que não parece razoável, muito menos, efetivo, nutrir melindres a respeito da morte, mas, os sentimentos que eu sinto não posso olvidar em confessar. Levar pessoas ao seu encontro é apenas Deus a aparar as próprias unhas. Admito que os meus heróis e os de Cazuza morreram de overdose, mas, morreram também de velhice e de artrose. Outros apagaram dormindo. Um leva dos meus heróis sucumbiu que nem passarinho: apedrejada pelas palavras dos vivos ou trucidada pela quentura de um tiro. Ademais, um bom bocado dos meus heróis tirou a própria vida ao saltar do cocuruto de um prédio. Outros de meus heróis morreram enfartados de toucinho e de tédio. O remédio é rir das próprias desgraças e não ficar matutando sobre a morte com respeito excessivo. Excetuando-se os mais jovens, os meus heróis morreram de queda, de caganeira e de catarro. Morreram de repente, como se a vida fosse um sopro que se assopra sem pressa. Ademais, morreram os meus heróis ceifados por cânceres e por tumores, sob os plácidos rumores de que — alvíssaras! — haveria sim alguma possibilidade de vida aquém da morte. Muitos de meus heróis morreram por causa do vento norte soprando contra as costas. Outros tiveram a tremenda sorte de tombar de morte súbita, que é aquele tipo de desaparecimento em que o indivíduo esconde a própria alma, abruptamente, em local desconhecido, sem propiciar aos sobreviventes preparos de saudade. Meus heróis morreram sem ar. Morreram sem mar, sem terra, sem teto e sem a chateação de pagar o último boleto. Outros se engasgaram com o próprio riso. Mortes estranham acontecem a todo instante. Não se engane. Por mais que se creia na poesia, a melhor idade é quando se tem vinte anos. Envelhecer é um golpe de estelionato aplicado pelo tempo. Não há futuro para as verdades absolutas. Todo mundo morre um dia e casa um dia e tem filhos um dia e até mesmo vive um dia. Ou nada disso. Os gatos pingados de meus heróis morreram afogados no próprio vômito. A verdade é abjeta, mas, não deixa de ser verdade só por causa do asco ou dos escrúpulos de etiqueta. Meus heróis morreram asfixiados, com a cabeça presa dentro de um saco plástico. Você ri porque os pulmões não eram os seus. A busca pelo prazer enlouquece a gente. Nunca se está fartamente satisfeito com as tristezas comezinhas. Ademais, meus heróis morreram apegados aos destroços frágeis dos mares da vaidade. Isso a ciência não conta: passados cem anos, se muito, nenhum ser vivente, sequer um descendente da nossa maldita árvore genealógica, saberá que existimos, que edificamos sobre a rocha, que rachamos de rir, que quebramos uma empresa, que demos o rabo ou que construímos impérios fabulosos feito cupins para a felicidade geral dos aficionados pelo patrimônio histórico e geográfico da puta que o pariu. Eu nasci para criar celeumas. Meus heróis morreram de pustemas, de edemas e de indignação suprema ao sopitar lapadas de sangue em derrames cerebrais sem a devida contenção gregária. Derramar lágrimas e letras é só o que me resta. Nem tudo se explica, irmãozinho. Tire as suas próprias conclusões. Você que chegou até aqui sem gastar uma única lágrima, sem cuspir no meu retrato a todo instante. De fato, de agora em diante, sou, sim, favorável à eutanásia dos sonhos diletantes que nunca se realizaram. Pobres diabos, esses meus heróis de matéria extinta, gente da minha mais alta estima. Quisera, um dia, essa cambada de seres etéreos retornasse para sussurrar nos escabrosos ouvidos da minha insônia, as respostas definitivas, livres, incontestes, para tanto mistério e provação terrena. Depravado é você. Provei por A + B que é preciso parar antes que o amor diminua. Um apagar sem ter acendido. Em condições normais de temperatura e pressão, tudo o que sei, sei bem menos do que o poeta português que sabe que nada sabe. Estranha a minha pessoa, não?